O centro de decisão da empresa está no Japão, o marketing e as vendas estão na Alemanha, mas é no Tramagal, no concelho de Abrantes, que se montam as Fuso Canter (antigas Mitsubishi e Mitsubishi Fuso) e é de lá que elas depois saem à conquista do mundo. Nesta fábrica trabalham 350 pessoas, cinco dias por semana – e podem ainda somar-se a este número outros 100 postos de trabalho indirectos. Aqui não há produção, apenas montagem de camiões, mas nem por isso a importância da fábrica diminui: no ano passado a facturação superou os 140 milhões de euros e este ano promete novo crescimento, segundo dados fornecidos pela empresa.
A comandar as operações há três décadas – com um interregno em que foi número dois – está Jorge Rosa, presidente da empresa, e que acumula também o papel de funcionário mais antigo. Entrou para a casa ainda nos anos 1970, numa altura em que a legislação proteccionista que impunha quotas de produção nacional aos construtores automóveis foi o esteio da agora Mitsubishi Fuso Trucks Europe (MFTE). Primeiro com os camiões Berliet Tramagal e depois, a partir de 1980, com as camionetas Mitsubishi Canter, a Metalúrgica Duarte Ferreira (MDF) criou as raízes para a Mitsubishi Fuso Trucks Europe. Em época de intervenção do FMI em Portugal com o Governo de Mário Soares, a família Duarte Ferreira entregou a Jorge a gestão da fábrica, numa época em que o trabalho de um mês assegurava o pagamento de salários e contas no seguinte. Hoje, os lucros superam os 3 milhões de euros.
Para se perceber como chegaram a estes números é preciso recuar novamente aos anos 1980.
Ao longo dessa década foram-se juntando à Canter mais modelos comerciais da Mitsubishi para montar na então MDF. Quando a marca exigiu uma nova linha de pintura para a nova pick-up L200, o alarme soou no Tramagal. “Eu não tinha dinheiro”, recorda Jorge. “Não tinha, rigorosamente!”. Uma empresa concorrente (talvez a IMA, de Vendas Novas, alvitra, sem se recordar ao certo), que produzia o furgão L300 para a Mitsubishi, estava ávida por conquistar este contrato de montagem e, a reboque, os milhares de Mitsubishi comerciais que a MDF produzia. Jorge tinha de arranjar forma de pagar a linha de pintura sem quaisquer recursos. Na altura, a MDF também montava, sob o mesmo regime de subcontrato, automóveis como o Portaro, jipe português de base romena. “Dinheiro não tinha, mas tinha aqui uns carros que não se vendiam”, recorda o gestor. O pagamento da linha de pintura em géneros – “três ou quatro Portaro”–, num movimento de gestão bastante audaz, assegurou não só a montagem da L200 como se transformou num investimento “absolutamente decisivo. Ao trazermos para aqui a pick-up, o centro de gravidade caiu todo para este lado, e acabou por vir o furgão e tudo”. De outra forma, “tinha ido tudo pelo ar. Tinha fechado isto aqui”.
Presidente sub-30
Em 1979 a fábrica da MDF deu início a uma vaga de contratações para responder à subcontratação da Canter iniciada pela Univex, empresa que distribuía a Mitsubishi em Portugal. Foi nessa altura que o agora presidente chegou à empresa, à frente da qual ficou “completamente sozinho” quando tinha apenas 27 anos. Em 1990 encabeçou o processo de venda da fábrica à Mitsubishi Motors Portugal, uma divisão do construtor japonês.
Anos mais tarde a Daimler, dona da Mercedes-Benz, acabaria por comprar a Mitsubishi Fuso Trucks and Bus Corporation, casa-mãe da fábrica portuguesa. “Os accionistas foram manifestando a sua confiança, mas eu claramente fui-me adaptando às circunstâncias que foram sendo diferentes ao longo dos anos”, reconhece Jorge, aos comandos da operação há décadas. Por isso, a história da MFTE conta-se também através da sua história, revelada à FORBES durante uma visita à fábrica, no final do Verão.
A solidez do projecto assenta em duas dimensões: a da estrutura, sem gorduras; e a humana, para a qual Jorge contribui com encontros regulares com todos os funcionários. Não existe comissão de trabalhadores, mas sim uma comissão sindical – “que respeitamos muito”.
No dia em que visitámos a fábrica estava, aliás, a disputar um jogo de futebol na Playstation com a directora financeira, entre os restantes trabalhadores que almoçavam na cantina. “É evidente que a empresa não obteve sempre tudo aquilo que achava importante para resolver os seus problemas, mas a cooperação tem sido muito razoável e muito baseada no diálogo entre empresa e trabalhadores”, assegura. Guilherme de Matos, à beira dos 50 anos, chegou aqui há 30, foi à tropa e regressou. Encarregado na fábrica, lembra a preocupação durante o descalabro nas vendas de 2009 – bem maior do que quando passaram a ter apenas a Canter na linha de montagem, em 1996. Quando foi necessário redefinir as condições de trabalho e anunciá-lo, Jorge chegou-se à frente.
“Tivemos muitos dias de paragem, com sacrifício de muita gente. Todos nós, a começar por mim, abdicámos de parte do salário”, conta. Guilherme lembra-se desses dias e assegura que só uns 10% dos trabalhadores contestaram. É quase irreal ouvi-lo, naquela fábrica pertença de gigantes industriais, falar de “amor à camisola”. Rui, o filho, com 23 anos, recém-chegado à linha de produção, lembra-se de, ainda menino, acompanhar Guilherme nas pescarias e tiro aos pratos da equipa da fábrica. Diz que, por ele, ficará nesta empresa, pelo menos tantos anos quantos o pai já soma.
A batalha da segurança
Apesar das mais de três centenas de funcionários permanentes, há momentos em que é preciso responder aos picos de produção. Aí, as empresas de trabalho temporário asseguram a oferta, e a manutenção e logística são feitas com a “prata da casa”. A formação é contínua para todos os trabalhadores, que são sujeitos a análise de polivalência para definir que posições podem desempenhar na produção das Canter.
A segurança no trabalho é “uma batalha” da administração e levou a acções como o totem identificador da equipa com melhor desempenho neste capítulo. “Temos um nível de acidentes de trabalho e de segurança médio, que poderia ser melhor. Há questões culturais.
A empresa investe muito, mas temos um acumulado de pequenas coisas que nos estragam os indicadores”, explica Jorge. Quanto à produtividade, o nível reduzido de automação não permite comparações directas com as grandes fábricas da Mitsubishi Fuso e da Daimler, mas o custo por veículo produzido é “competitivo”, assegura.
Maria do Céu Albuquerque, presidente da Câmara Municipal de Abrantes, congratula-se pela saúde da empresa e pela liderança firme e sensata de Jorge, que conseguiu “pese embora as dificuldades, ter a equipa unida”. O bom desempenho da MFTE não é indiferente à região, acrescenta a autarca. Em Abrantes destacam-se, além da Mitsubishi Fuso, a secular produtora de azeite Gallo e as multinacionais Robert Bosch e Tupperware. Nesta, conta-nos Guilherme, chegaram a aparecer recortes de jornais, afixados à socapa, quando a administração da MFTE surpreendeu os funcionários com aumentos escalonados até aos 14%. Sobre esta subida salarial decidida de forma “absolutamente unilateral” pela administração e anunciada no almoço de Natal de 2016, o presidente da empresa diz apenas que “foi uma decisão muito pouco vulgar, que apanhou toda a gente de surpresa”. Jorge só a discutiu com a casa-mãe.
Cerca de 80% dos postos da linha são ocupados por gente da região, revela Rui Correia, director de produção. Só no primeiro trimestre deste ano, quando a produção subiu para 46 veículos por dia (à boleia da aceleração da economia europeia e da “conquista” do Irão), se tornou necessário alargar a área geográfica da contratação para lá dos 25 km habituais.
Contratar em locais mais afastados só para cargos mais qualificados, com salários que já permitem outra mobilidade, como um engenheiro de Almeirim e outro de Ponte de Sor, por exemplo.
A responsabilidade social que recai sobre o maior empregador da região “está presente há muitos anos”, assegura Jorge. “Não estamos aqui porque é um sítio de mão-de-obra barata”. Ao know-how de 37 anos na montagem da Canter junta-se a interdependência entre empresa e trabalhadores, preferencialmente sem “questiúnculas” ou “guerras que não acrescentam valor”, defende. “Admiro a capacidade do conselho de administração”, diz Maria do Céu, apontando as muitas dificuldades, nomeadamente na altura da crise de 2009, que sempre trabalhou “sem nunca baixar os braços. De tal maneira que temos a honra de ser o país escolhido, a par do Japão, para avançar com as primeiras viaturas eléctricas” [da Canter], realça a autarca.
Olho estratégico
A ajudar à actividade da fábrica esteve também, desde há cinco anos, um sistema que o grupo estreou no Japão e logo depois lançou na linha portuguesa. Passou a encomendar-se os componentes necessários para produzir vários tipos de Canter, ficando o controlo de stocks e encomendas à responsabilidade da própria fábrica. Antes, se recebesse 10 kits de camionetas de cabina simples, a MFTE tinha de montar essas 10 unidades, mesmo que parte não tivesse clientes e, por outro lado, houvesse lista de espera para outras versões.Esta capacidade de responder num espaço curto de tempo – até seis semanas – é uma mais-valia destacada por Jorge.
Tal como a adaptabilidade da administração que lidera. Aquando do “ano muito duro” de 2009, elaborou um plano de contingência, apoiado pela casa-mãe. Partiu à conquista de mercados até aí vedados e saiu derrotado no Dubai, porque a lógica do grupo pendeu para outras fábricas que precisavam de produto para sobreviver. Mas ganhou Marrocos, Irão e Turquia.
Ao grupo começou ainda a vender serviços de apoio, formação e auditorias. “Não fazia sentido virem do Japão fazer isso a Marrocos ou ao Egipto, estando nós aqui ao lado”, justifica. Ainda que não representem mais de 5% da facturação anual, os serviços foram um verdadeiro balão de oxigénio no período de maior carência. A MFTE ainda estudou a produção de autocarros do grupo, mas não conseguia cumprir algumas das especificações europeias. Ir além dos camiões é algo que Jorge acha difícil, mas não invalida que possa pensar, um dia, em namorar outros modelos da Daimler AG. Recorde-se que a empresa produz camiões sob as marcas Mercedes-Benz, Freightliner, Western Star, BharatBenz. A Mitsubishi Fuso entra na gama abaixo dos 7,5 mil kilos.
Detida a 100% pela Mitsubishi Fuso Trucks & Bus Corporation, que por sua vez é detida a 89,3% pela alemã Daimler, a fábrica do Tramagal responde a superiores que estão no Japão, em Kawasaki, e não à sede da Daimler em Estugarda. O grau de liberdade da empresa, por cá, é “relativamente elevado” para tomar decisões sobre problemas locais, desde que enquadradas nas políticas globais do grupo. Existe um “sentimento de confiança” da casa-mãe, fruto da experiência de quase quatro décadas de produção da Canter, da competitividade, da flexibilidade e, como habitualmente em Portugal, do custo. “Não vale a pena sermos inocentes: se não formos competitivos, não faz sentido”.
Se as bolas de cristal da indústria automóvel andarem afinadas, o Tramagal já chegou ao futuro.
É certo que a nova eCanter (o modelo elétrico) só tem 100 km de autonomia. No entanto, a vocação urbana desta camioneta, a primeira eléctrica produzida em série a nível global, leva a que Jorge tenha confiança no futuro da fábrica, com olhos postos também nos EUA, para onde já começou a exportação. Além disso, em 2019 arrancará em pleno a montagem da eCanter, que tomará “boa parte” da produção, vaticina o responsável.