John Stevens é presidente-executivo da Heartflow, uma start-up que desenvolve soluções tecnológicas na área da saúde e que “levantou” recentemente mais de 410 milhões de euros junto de vários investidores, como a Wellington Management, Baillie Gifford & Co., a GE Ventures e a BlueCross BlueShield Ventures.
Desta ronda de invesitmento resultou uma avaliação de 1,3 mil milhões de euros, segundo dados da empresa de pesquisa Pitchbook.
A avaliação de mercado da empresa tem por base uma ideia ambiciosa: testar uma intervenção não invasiva que penetra as artérias coronárias para aferir o seu grau de bloqueio.
Actualmente, esse tipo de teste implica uma perfusão miocárdica em que é usado um cateter para medir o fluxo sanguíneo, um procedimento que envolve riscos e a que se dá o nome de avaliação da reserva de fluxo coronário (FFR, na sigla em inglês).
É um procedimento que se realiza milhões de vezes por ano em todo o mundo para decidir se um paciente precisa de um stent (ou endoprótese) para desobstruir uma artéria.
Mas a Heartflow diz que obtém uma avaliação semelhante usando um software baseado em algoritmos que usam Inteligência Artificial (IA), e a partir de uma tomografia computorizada (TAC) constroem uma imagem tridimensional do coração por via de raios-X. Uma técnica muito menos arriscada.
O sistema de seguros de saúde gerido pelo governo dos EUA (Medicare) está rendido e reembolsa cerca de 1300 euros à Heartflow por cada teste efectuado. “É a maneira mais eficaz e eficiente de olhar para as doenças cardiovasculares, e é a solução mais segura que existe actualmente no mercado. Ou seja, é uma combinação imbatível”, garante Bill Weldon, presidente não-executivo da Heartflow e ex-presidente-executivo da Johnson & Johnson.
Porém, cépticos não faltam. “É normal que este tipo de tecnologias suscite grande alarido e entusiasmo, mas depois, quando são estudadas em detalhe, a realidade fala mais alto”, afiança Steven Nissen, director da unidade de cardiologia da Cleveland Clinic. “Inicialmente, a ideia parece promissora, mas ainda carece de solidez em termos científicos”, acrescenta.
A utilidade desta tecnologia levanta questões profundas como qual é o grau de eficácia dos stents no tratamento de doenças cardíacas e será que é mesmo necessário saber se uma artéria está aberta ou não.
A Heartflow nasceu pela mão de Charles Taylor, nos anos 90 do século passado, quando ainda frequentava o doutoramento e se dedicava ao estudo do efeito do vento nas asas de aviões de combate. Poderiam os mesmos cálculos matemáticos explicar o fluxo sanguíneo no coração?
Taylor assumiu as funções de director do departamento tecnológico da Heartflow e após conseguir cerca de 1,7 milhões de euros em venture capital, testou a primeira versão do seu software numa dezena de pacientes na Letónia.
Em 2007, Christopher Zarins, actual director de cirurgia vascular da Escola de Medicina de Stanford, doutorado na área e professor em Stanford, decidiu juntar-se a Taylor para fundarem a Heartflow.
No caso de Stevens tudo começou quando era miúdo e espetou uma forquilha no pé. Como sofreu imenso, decidiu que um dia seria médico-cirurgião. Há 20 anos desistiu de operar e dedicou-se ao empreendedorismo.
Em 2010 juntou-se a Taylor e à Heartflow. Quatro anos depois, o software da empresa analisou os TAC – Tomografias computorizadas – de 254 pacientes e identificou 84% de FFR com obstrução e 86% de FFR com fluxo normal. Nesse mesmo ano, a FDA – o regulador do mercado farmacêutico americano – aprovou o software da Heartflow enquanto instrumento de avaliação dos sintomas de doença arterial coronária.
Dúvidas até ao fim
Os especialistas usam o teste da Heartflow apenas nos casos que levantam mais dúvidas. Hank Plain tem 60 anos e, recentemente, fez um TAC que revelou placa calcificada nas artérias coronárias, mas o resultado de uma prova de esforço – isto é, caminhar e correr numa passadeira com eléctrodos no peito – não acusou rigorosamente nada.
Depois disso, a TAC foi analisado pelo software da Heartflow, que revelou duas obstruções parciais. O médico decidiu introduzir dois stents. “É muito assustador saber que temos uma doença arterial coronária. Foi um choque para a minha família, mas o mais importante é estar de volta à vida normal!”, explica Plain.
A questão é saber se os stents compensam os riscos e os custos envolvidos. É verdade que salvam vidas quando colocados durante um ataque cardíaco e que aliviam as dores no peito, mas se compararmos os resultados com os de um estudo realizado há dez anos em 2287 pacientes e uma simulação de teste mais recente fica a dúvida se serão mais eficazes do que a medicação utilizada.
Sendo assim, importa questionar se o teste da Heartflow permite evitar procedimentos desnecessários ou nem por isso.
A Heartflow afirma que, por cada teste de cerca de 1300 euros, evita gastos no valor de 3500 euros. Mas “será que os pacientes vivem mais tempo e têm menos enfartes recorrendo a esta técnica, comparativamente a uma abordagem mais convencional?”, pergunta Venkatesh Murthy, cardiologista na Universidade do Michigan.
“É muito assustador saber que temos uma doença arterial coronária. Foi um choque para a minha família, mas o mais importante é estar de volta à vida normal!”, explica Plain.
Ou melhor, será que os pacientes precisam mesmo de medir o fluxo cardíaco? “Não acordo a meio da noite a pensar que podemos fazer FFR em mais pessoas”, diz Ethan J. Weiss, cardiologista na Universidade da Califórnia, em São Francisco. Há muitas dúvidas técnicas por esclarecer.
A Heartflow calcula o fluxo com base na forma do vaso sanguíneo, tal como podemos estimar a velocidade do caudal de um rio a partir da forma das suas margens. “Tentar medir o FFR a partir de uma TAC é como tentar correr a maratona ao pé-coxinho”, explica Darrel Francis, professor de cardiologia no National Heart & Lung Institute (Reino Unido).
Segundo um estudo publicado no JAMA Cardiology, as avaliações que usaram TAC para medir o fluxo, incluindo, mas não apenas a Heartflow, revelaram-se menos rigorosas nos pacientes em estado mais grave.
A Heartflow refuta, dizendo que o estudo “apresenta falhas”. Mas nem só de cépticos se faz o mundo. Robert D. Safian, cardiologista no hospital Beaumont Health em Royal Oak, Michigan, a quem a Heartflow pagou 3000 dólares (cerca de 2651 euros) para estudar o caso, é um defensor do teste.
“Inicialmente fazia parte do grupo dos mais pessimistas, mas agora acredito nisto a 100%. É uma tecnologia espantosa!”, realça, dizendo que, nos últimos três anos, já usou o teste Heartflow em dois mil pacientes.
As maiores seguradoras norte-americanas comparticipam o teste, à imagem do que faz o eternamente céptico Serviço Nacional de Saúde britânico.
“Os números vão acabar por falar mais alto”, diz Stevens.