No Mosteiro de Odivelas está prestes a dar-se mais um passo na ficção feita em Portugal. Nos corredores e salas vazios filmar-se-á “Madre Paula”, uma série de época baseada na história do romance entre uma freira e o rei D. João V, numa rodagem que prolongar-se-á pela Primavera. Mas, para já, apenas alguns actores cruzam os corredores, cobertos de pó-de-arroz e com indumentária adequada às personagens. Ainda não há câmaras – fazem-se somente os testes de imagem -, mas já se nota uma certa azáfama no espaço, que, até há muito pouco tempo, albergou o Instituto de Odivelas, a escola feminina do Colégio Militar.
Filipa Reis, responsável pela Vende-se Filmes, produtora desta nova aposta da RTP, está expectante em relação ao projecto a nível doméstico – mas tem os olhos postos no exterior. Prova disso é que o primeiro contacto da produtora com a FORBES decorreu semanas antes na feira de televisão MIPCOM, onde se compram e vendem os formatos que o leitor vê no pequeno ecrã.
Nos stands, organizados de forma labiríntica, como em qualquer feira, convivem conteúdos para todos os gostos: telenovelas filipinas, horas e horas de aulas de ioga, documentários sofisticados de grandes canais de informação, reality-shows japoneses. Todos querem vender e todos competem por atenção. Conseguir reuniões nos stands das majors – muitos deles luxuosos à beira-mar, na Croisette – é muito difícil sem marcação. Anúncios a conteúdos ocupam todo o espaço livre disponível nas paredes. Num deles, de uma operadora de televisão francesa, figuravam os cartazes das séries à venda e o subtil pedido: “Ask us for ANYTHING!”. O olhar provocante de uma estrela de telenovela da mexicana Televisa coexiste com a majestade de Jude Law, o Young Pope, em reclames gigantes a forrar o exterior do Palais.
É o maravilhoso mundo da televisão.
Abrir horizontes
Em Cannes, Filipa trocou cartões, abordou pessoas, “picou” o ambiente. De todos os contactos que estabeleceu, não sentiu qualquer paternalismo. “Partem do princípio que, se estamos ali, é porque temos um negócio sério”, reconhece. E é de negócios que se trata. Além dos privados, os países também estão presentes através de stands, uns muito sofisticados, outros mais discretos. É uma forma que os Estados encontraram para promover a internacionalização da indústria audiovisual no seu todo. O “Portuguese Pavilion” é exemplo disso mesmo. Após um convite do Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) aos três principais operadores de televisão portugueses (RTP, SIC e TVI), montou-se um stand que incluiu também a Associação de Produtores Independentes de Televisão (APIT). Portugal está presente no MIPCOM com esta configuração desde 2015. Até então, era cada um por si.
Filipa foi a Cannes pela primeira vez para explorar uma área que os players do mercado audiovisual nacional estão a começar a levar cada vez mais a sério: a exportação de conteúdos. O projecto da “Madre Paula” foi um dos “trunfos” que levou a Cannes para mostrar na maior feira de audiovisual do mundo. Foi à descoberta, lembra, já em Portugal, numa conversa que decorreu perto do monumento de Odivelas que servirá de cenário a esta produção. Por lá, recorda, tacteava num espaço novo. Mesmo assim, conseguiu reunir com alguns canais – entre eles o canal público alemão ZDF, com o objectivo de propor-lhes uma co-produção para esta série. O facto de o tempo já ser curto para celebrar uma parceria impossibilitou o acordo, mas não a ambição.
Susana Gato é secretária-geral da APIT e tem acompanhado a crescente vontade dos operadores e produtores independentes em fazer ‘viajar’ os seus conteúdos – como se diz na gíria do meio. “Constatamos que o mercado nacional não tem muito por onde crescer”, explica à FORBES. “Se queremos construir uma indústria, um sector forte e sustentado, temos necessariamente de avançar para o exterior. Isso só se consegue através da internacionalização das nossas obras”, defende. “Rentabilizar [as obras] é a chave para o crescimento”.
Da parte do Estado, começa a vislumbrar-se um despertar dos responsáveis para a televisão. Notam-se já alguns apoios e ténues estratégias de internacionalização de uma indústria ainda incipiente. Filipa, cuja “Madre Paula” usufrui de um apoio de 365 mil euros do Estado português, crê que a internacionalização “pode ser uma maneira não só de aumentar os baixos orçamentos, como de haver cruzamento com técnicos experientes”. Daí ter decidido, por sua conta e risco, ir à última edição do MIPCOM, em Cannes, que decorreu de 16 a 20 de Outubro. Mas Filipa sabe que não pode fazer tudo sozinha e que, para internacionalizar-se, é preciso que outros factores entrem em campo.
Um novo paradigma
De acordo com o estudo “Produção de Conteúdos Audiovisuais em Portugal”, promovido pela APIT e realizado pela Sociedade de Consultores Augusto Mateus & Associados (AM&A), sobre a indústria do audiovisual nacional, há muito por fazer. O documento sugere que é um sector com potencial para crescer e equiparar-se aos melhores exemplos europeus, mas ainda não tem uma estratégia que lhe permita desenvolver-se em toda a linha. Como resume Augusto Mateus à FORBES: “é preciso criar uma solução integrada para este mercado em transformação, por forma a conseguirmos responder positivamente a esta oportunidade de criação de uma indústria.”
Há sinais de mudança, como a aposta da RTP na produção de séries e documentários que pretende criar uma pipeline de conteúdos produzidos a nível nacional. “Uma enorme lufada de ar fresco”, garante Filipa, para o sector. A nova estratégia do canal público para os conteúdos audiovisuais tem “ambição internacional”, confirma à FORBES Nuno Artur Silva, administrador da RTP para a área dos conteúdos. “Sendo a RTP uma empresa de língua portuguesa, deve ter a ambição de fazer conteúdos que todo o mundo possa gostar. Não nos vamos limitar a uma escala regional”, esclarece. Apesar de as telenovelas terem já tido um percurso de sucesso nos mercados internacionais, Nuno antecipa que conteúdos diferentes, como as séries, terão mais dificuldades em vingar lá fora pela concorrência extrema do audiovisual no mundo inteiro. “É o género premium da televisão hoje em dia”, resume. E a entidade pública quer entrar nesse jogo. Mas este género premium exige produtos premium para se afirmar no exterior.
Um dos credos que a proto-indústria do audiovisual em Portugal cita constantemente é o do “Borgen”, série dinamarquesa produzida pelo operador de serviço público local, a DR, sobre os meandros de uma democracia parlamentar. A série ganhou enorme projecção no mundo inteiro – inclusive em Portugal, ao ser transmitida na RTP2 em 2015. De recordar que a Dinamarca, um país com metade da população portuguesa, e que tem um idioma pouco conhecido, tem uma cultura de ficção que produziu séries e actores reconhecidos a nível mundial – uma evolução que surpreendeu muitos. Teresa Paixão, directora da RTP2, resume desta forma à FORBES a sua estupefacção com a evolução do pequeno país nórdico: “Alguma vez, quando era miúda, vi uma série dinamarquesa? Nunca! Fiquei abismada quando vi uma série dinamarquesa daquela qualidade.”
Para se chegar ao patamar de “Borgen”, foi preciso um investimento de décadas e a criação de uma cultura de audiovisual que vai dos produtores até aos espectadores. Isto é, todos têm de estar habituados a outro tipo de produções. “Isto explica-se com o investimento estatal, com a convergência entre a televisão e o cinema, e pelo facto de estarem integrados no grupo dos países escandinavos, que fazem co-produção entre eles”, refere Nuno. Algo que a FORBES testemunhou no MIPCOM: os canais públicos da Suécia e da Dinamarca partilhavam o stand de vendas de conteúdos, numa espécie de cluster escandinavo. Por cá, a falta de músculo financeiro compromete qualquer tipo de tentação megalómana. Os orçamentos são reduzidos: uma série portuguesa pode chegar a custar 75 mil euros por episódio, contrastando com orçamentos mais avultados de séries como a citada Borgen, com custos estimados no meio milhão de euros por episódio.
O caminho das sinergias é algo que está a ser seguido para a produção de conteúdos mais sofisticados, permitindo a partilha do investimento e uma exportação mais eficaz, realça o administrador da RTP, dando o exemplo da série de época “Vidago Palace”, feita em co-produção com a Televisión de Galicia. Junto das equipas, o entusiasmo dos técnicos, actores e guionistas nestes novos projectos está a compensar os baixos orçamentos. “Todos querem participar. Mas para se conseguir cumprir os orçamentos que temos, ninguém está a ganhar bem. Há maneiras de sermos mais bem pagos do que a fazer isto”, garante Filipa.
Potencial de exportação
Tal como quando se fala em “Borgen”, outro credo na boca dos intervenientes da indústria portuguesa do audiovisual é a Turquia. De um país exclusivamente dependente de produção televisiva externa, como do Brasil e dos EUA, passaram a ter um mercado dinâmico e com força suficiente para conseguirem exportar, só em séries, 230 milhões de euros em 2015, mais 40% face ao ano anterior, segundo dados do estudo da AM&A. Em Portugal, o valor total relativo estritamente à exportação de conteúdos televisivos não é passível de ser calculado por falta de dados estatísticos. Contudo, o consultor Augusto Mateus, em contas feitas para a FORBES, estima que em 2015 as produtoras e as empresas de actividade conexas tenham facturado mil milhões de euros, e que a exportação de serviços de audiovisual ronde 10% – ou seja, cem milhões de euros.
O retrato que o estudo da AM&A faz do audiovisual nacional revela que Portugal continua a ser um dos poucos países europeus em que a exportação de obras de televisão é muito incipiente. “Uma das razões que ajuda a justificar este resultado prende-se com a estratégia seguida pelas televisões nacionais muito assente na adaptação de formatos já experimentados no estrangeiro”, lê-se no documento. Esta realidade impede que a Filipa e todos os outros produtores possam perspectivar um horizonte internacional, pois para exportar o produto audiovisual é necessário, primeiramente, criar conteúdos distintivos e testar os mesmos no mercado doméstico. “Além disso, os produtores independentes apresentam uma apropriação baixíssima sobre os direitos de propriedade, uma vez que os canais televisivos (seus clientes) se apropriam do seu exclusivo, fruto do desequilíbrio no poder negocial entre as partes”, revela a AM&A.
Apesar de a exportação ser ainda algo muito residual noutros géneros, já se exporta telenovelas – o produto televisivo mais maduro produzido em Portugal – de forma mais frequente desde o início da década passada, depois do grande reforço na produção deste formato em Portugal pela mão da TVI. Uma das pioneiras na venda de conteúdos portugueses é Manuela Caputi. A profissional italiana trabalhou durante anos em cargos de direcção na área de vendas em produtoras portuguesas como a NBP (hoje Plural) e a SP Televisão. Regressou, em 2009, à Itália natal para liderar o departamento de vendas do gigante Mediaset.
Manuela é uma profissional da televisão que conhece os dois lados, o de cá e o de lá. Quando começou a vender telenovelas no mercado internacional, a grande prioridade foi “mudar a percepção que o produto nacional” tinha lá fora:
“O produto português não era prioritário” para os canais internacionais, diz. A concorrência é enorme fora do país e é difícil conseguir colocar produto. Um dos factores decisivos para “furar” esta desconfiança foi o cultivar das relações pessoais neste meio. “Este é um mercado em que os contactos são de fundamental importância”, defende. Além disso, reconhece que é necessário conhecer bem a capacidade financeira do interlocutor, adaptando os preços aos países a que se está a vender.
Hoje, as telenovelas portuguesas já conseguem ‘viajar’. Mas, claro, além das “técnicas” de venda, é necessário que o produto seja bom. É essencial que haja uma boa história, defende Manuela, porque “uma boa história não tem barreiras geográficas nem de tempo”, diz.
Para os dois canais privados portugueses, a SIC e a TVI, cuja produção de ficção assenta quase exclusivamente neste género, a venda dos seus produtos para o estrangeiro é, de resto, uma aposta assumida. A SIC chegou até a ter um stand autónomo para vender no MIPCOM, numa edição da feira antes da criação do pavilhão comum português pelo ICA. João Pedro Nava, director de distribuição do grupo Impresa, considera à FORBES que a exportação de conteúdos “é uma área muito importante” para a SIC. As receitas das vendas é um assunto, de resto, sobre o qual nenhum dos responsáveis dos grandes operadores se alonga. Nenhum dos três canais de televisão generalistas revelou o montante total das vendas de conteúdos, mas segundo fontes ouvidas pela FORBES, este é residual. “O que posso dizer é que, cada vez mais, os nossos modelos de negócio são pensados de raiz tendo em conta a parte internacional. E tudo o que nós fazemos num grupo privado de media são negócios rentáveis”, garante João Pedro.
À procura de um rumo
Uma das grandes desvantagens que Portugal tem, segundo o estudo da AM&A, no que toca à capacidade de criar uma verdadeira indústria audiovisual é a ausência de uma estratégia nacional para o sector. O estudo da consultora é contundente: aponta precisamente como uma das fraquezas da área a “incapacidade de internacionalização das produções nacionais” devido a factores como o “notável abandono do Estado no apoio ao desenvolvimento do sector”. Mas parece que já se estão a dar alguns passos para reverter a estagnação.
Filomena Serras Pereira lidera o ICA, a entidade que gere os concursos de apoio ao audiovisual e cujo orçamento é garantido por via da contribuição que as grandes operadoras de telecomunicações passaram a fazer para os apoios à actividade cinematográfica e audiovisual portuguesa. De acordo com um decreto-lei aprovado em Agosto de 2012, a parcela das verbas alocadas pelo ICA para o audiovisual deverá ser equivalente a 20% do seu orçamento anual, com possibilidade de chegar a um máximo de 30%. É uma área totalmente nova que o instituto está a explorar. Recorde-se que em 2012 não houve concursos e, por isso, não houve qualquer apoio do Estado à indústria. Mas, desde então, o cenário mudou. Em 2014, por exemplo, o apoio do ICA ao audiovisual totalizou cerca de 2,9 milhões de euros e no ano passado ascendeu a 3,8 milhões de euros. Apesar das boas notícias, os números revelam também que não há verbas suficientes para apoiar um número mais vasto de projectos. No mais recente concurso com resultados já fechados, referente a 2015, dos 40 projectos admitidos, apenas 12 terão financiamento. Esta realidade mostra que mais do que abrir ainda mais os cordões à bolsa, o que a indústria necessita é de políticas públicas mais capazes de levar a marca “made in Portugal” mais longe. É nisso que Filomena tem procurado trabalhar. Aliás, foi isso que ficou visível no MIPCOM, tendo sido iniciativa do ICA juntar os três grandes canais e os produtores independentes num stand português na feira de conteúdos – o custo suportado pelo ICA foi de 56 mil euros.
O caminho é longo para a indústria audiovisual nacional. Muito ainda tem de ser feito, como reconhecem todos os intervenientes do mercado. E já se nota a aproximação de diferentes entidades do Estado (que até há bem pouco tempo estavam de costas voltadas) em prol do sector. Têm decorrido conversações entre o ICA e a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP). Segundo Filomena, “as reuniões tiveram lugar recentemente e com o objectivo de sensibilizar para a necessidade de abertura de programas de internacionalização no âmbito do Portugal 2020”. O objectivo é fazer com que os mercados internacionais passem a conhecer o produto português e captar investimento estrangeiro para Portugal. Segundo a AICEP, está a ser avaliada “a dinamização de acções de promoção em mercados e eventos de grande projecção internacional” e a “colocação ao serviço destas indústrias culturais menos conhecidas nos meios da economia os apoios há muito disponibilizados para a internacionalização de outras indústrias.” Tanto o ICA como a AICEP estão actualmente a avaliar as necessidades de investimento para levar a cabo estas intenções. Mas por mais estratégias que possam estar sobre a mesa, estas pouco servem sem produto.
Filomena encara com optimismo a evolução da qualidade na televisão. “Se hoje em dia virmos a ‘Vila Faia’, pensamos ‘como é que isto passou?’ Mas o que é certo é que se melhorou imenso. Nesta produção audiovisual, os produtos podem começar por ser fracos, mas com o tempo, começa a ter-se um produto de maior qualidade. E o encaixe pode vir a aumentar nos mercados internacionais.” E dá o exemplo do cinema português, que muitas vezes não consegue mercado em Portugal e que tem uma grande recepção nos mercados externos.
“Madre Paula” é a estreia de Filipa Reis na ficção no pequeno ecrã. Está habituada a fazer cinema – foi produtora de filmes como Balada de um Batráquio, de Leonor Teles, vencedora de um Urso de Ouro no Festival de Berlim, em 2016. Sabe que os produtos televisivos ainda não alcançaram um certo patamar de qualidade exportável. Mas diz que, para que a televisão recupere terreno, só há uma solução: “é preciso fazer.”