Invadido pelas japonesas a partir da década de 1970, o mercado de motos europeu tornou-se o quintal dos nipónicos durante as seguintes. Motores fiáveis, alguns “explosivos”, e qualidade de construção genericamente acima das europeias, tornaram Honda, Kawasaki, Suzuki e Yamaha em produtos de paixão com racionalidade.
Neste século, o céu desanuviou para os construtores europeus – alguns antes definhados, outros metidos durante anos no seu nicho – com o regresso dos motociclistas europeus às raízes.
Entre os vários sinais deste renascimento, a austríaca KTM tem agora uma gama de estrada em que se inclui a 1290 Super Adventure, concorrente da mais vendida moto acima de 750 cc, a BMW R 1200 GS, e da Ducati Multistrada que escolhemos para a nossa garagem.
De Itália assistimos ainda ao regresso em força das Vespa, Moto Guzzi e Aprilia, trio do grupo Piaggio. Também a compatriota MV Agusta reforçou a gama. Igualmente em torno dos Alpes, a BMW, agora uma casa onde há muito pão, aproveitou a tecnologia da divisão de automóveis presente no i3 para lançar uma moto eléctrica – a C Evolution, estacionada na garagem ao lado da tomada de electricidade –, enquanto a francesa Peugeot ganhou novo foco nas motos com a venda da maioria do capital desta divisão aos indianos da Mahindra. Estes, segundo o Economic Times da Índia, poderão estar agora a tentar a compra dos britânicos BSA e Norton, que sofreram no claudicar da indústria britânica na década de 1970. Tal como ocorreu à Triumph, que, salva por um empresário britânico ligado ao imobiliário, conseguiu manter-se sempre em produção, trazendo de volta à gama, no arranque do século, um nome histórico: Bonneville. A segunda geração da nova encarnação fica junto ao cartaz de “A Grande Fuga”.
Músculo e fôlego na garagem
Pronta para o duelo no “shaker” de conceitos em que se misturam largos quilómetros de estrada e longos momentos de aventura, em que é referência a BMW R 1200 GS, a Multistrada é uma das novas europeias “on the block” nesta década.
É o “cuore sportivo” para a garagem, mas com versatilidade de utilização. Pela evolução assinalável que a marca de Borgo Panigale conseguiu neste século, os maratonistas das estradas podem sentir esta Ducati como alternativa à 1200 GS e, com alguma bonomia, talvez até ao porte e elegância da Montserrat Caballé das duas rodas, a Honda GoldWing.
A Multistrada é produto da renovação iniciada com os investimentos dos norte-americanos da Texas Pacific Group e dos italianos da Investindustrial. Estes deram força à marca na competição e abriram as fábricas da Tailândia e Brasil, contribuindo para o regresso aos lucros e abrindo o apetite ao grupo Volkswagen, que em 2012 pagou 860 milhões de euros para fazer da Ducati a arma de duas rodas na luta entre os arqui-rivais Audi e BMW. Entretanto, a Ducati até já começou a dar tecnologia aos automóveis: o concept XL Sport, revelado pela Volkswagen em 2014, incorpora um motor de dois cilindros e 200 cavalos (cv)… da Ducati.
O motor da Multistrada 1200 é prova do potencial: com dois cilindros em V e 1200 centímetros cúbicos, chega aos 160 cv.
As propostas na gama variam entre a versão “Dakariana”, designada Enduro, ou a estradista. É esta que vamos buscar ao concessionário. Começamos por abordar o cardápio da electrónica seleccionando no computador a viagem apenas para um (a suspensão fica no ponto mais baixo) e modo de condução Urban, porque há que manter a urbanidade e os 100 cv disponíveis chegam… para já. Uma espécie de estágio antes de mudar para Touring, o segundo nível do topo das prestações da Ducati, com potência e binário totais, mas sem permissividade a “cavalinhos” a que o modo Sport (suspensão mais rija) já abre a porta.
Longe do asfalto seguimos em modo Enduro, com menor ímpeto, suavização do ABS e controlo de tracção. Não precisamos de parar para alternar entre modos de condução e somos “conduzidos” nesta operação por botões volumosos no guiador e um grande ecrã digital que incorpora a informação habitual, a do computador de bordo e o sistema multimédia com ligação por bluetoouth aos sistemas Android e iOS, permitindo, por exemplo, transmissão das músicas do smartphone para os auriculares do capacete e a partilha de percursos com os amigos.
A Multistrada D-Air traz à garagem um elemento único: um módulo de accionamento de airbag. Este exige um colete ou blusão especiais da Dainese com quem a Ducati formou uma parceria. A moto tem um sistema que, ao detectar um impacto de frente ou traseira, ou uma queda, activa, através da gestão da Ducati, via wireless e em 45 milissegundos, airbags no blusão. A marca aponta a redução de lesões no peito em 92% e nas costas em 82% com este sistema – sem lamento, assumimos que ficou por ensaiar.
Para as fugas ao quotidiano
Se encontrar um cartaz do filme “A Grande Fuga” em que o actor Steve McQueen salta sobre a vedação (na verdade foi um duplo) do campo de prisioneiros de Stalaf Luft III, compre-o. A imagem daquele filme que imortalizou o feito de um grupo de britânicos, prisioneiros dos nazis, ficará bem sobre o lugar da garagem onde estacionará a Bonneville T120, herdeira da geração de motos Triumph como a que protagonizou aquele salto cinematográfico, em 1963, quatro anos após a criação da “Bonnie” original.
A cena no grande ecrã e o gosto do galã McQueen – bem como de Marlon Brando, que conduziu a sua própria Thunderbird em “Wild One” – pelas Triumph ajudaram a dar ao fabricante a patine intemporal que faltou a outros britânicos, como a Norton e a BSA.
O nome Bonneville, inspirado no lago seco norte-americano Bonneville Salt Flats, onde um streamliner equipado com motor da Triumph bateu o recorde mundial de velocidade em 1956, foi relançado no arranque deste século. A Bonneville T120 original teve como “embaixadores” Elvis Presley, Clint Eastwood, Bob Dylan e… Evel Knievel, que na tentativa de mais um salto espectacular sobre as fontes do hotel e casino de Las Vegas Caesar’s Palace, quase fazia da proeza na Bonneville a última da sua vida (momento a seguir no Youtube, sob o título “Evel Knievel and the Caesar’s Palace”).
Este ano, a moto vintage foi completamente renovada. Controlo de tracção e modo de condução para piso com baixa aderência, punhos aquecidos – até ao ponto do quase escaldão com mãos nuas, no modo mais intenso –, computador de bordo, tomada USB para carregamento de telemóveis e indicador da mudança engrenada são novidades na Bonneville T120. Tal como o motor. Para aquela manhã de domingo em que apetece fazer o passeio dos alegres numa serra sinuosa, o motor a rugir pelos dois escapes é uma companhia a preceito.
A “Bonnie” é a moto da garagem que guarda o livro de história.
A scooter ecológica
Enquanto se espera pela nova geração da C Evolution, desvendada há dias no Salão de Paris, a actual vai fazendo a sua carreira. Homologada para carta A1, o que pressupõe potência até 11 kw (15 cavalos), a scooter permite a condução a quem apenas tem carta de automóvel, mas sem a apatia das motos de 125 centímetros cúbicos (cc) a gasolina, homologadas também como A1. A BMW beneficia dos 48 cavalos (cv) apontados pelo construtor como “potência pontual”, apenas em situação de arranque. Com isto, ganha pontos para que alguém lá de casa possa conduzi-la mesmo sem ser portador de carta de moto. E soma-os de novo por permitir uma desenvoltura desconhecida para as 125 cc.
Nascida entre as típicas citadinas (scooters), a C Evolution é a moto para uso diário, mas com o GoogleMaps activo. No limite, superámos os 100 km numa condução cuidada na cidade, no modo Eco Pro, e sem passar de 100 km/h na auto-estrada – aquém dos 128 km/h que atinge, até que o limitador a impede de prosseguir para velocidades que lhe sugariam a carga da bateria. Noutro exercício, a 120 km/h estabilizados, a autonomia encolheu para a casa dos 60 km. A BMW indica que 80% da carga é garantida após 2h15 e que o tempo de carga total dura aproximadamente três horas, mas muito depende da intensidade da corrente eléctrica – na garagem da redacção, com a bateria a 9%, foram necessárias mais de 3h30 para concluir a operação.
Com vários modos de condução, apenas o Sail não faz regeneração de energia na desaceleração, mas tão só na travagem. Já o Eco Pro é o único que coarta a explosividade do motor eléctrico nesta scooter que, na opção Dynamic, combina o “disparo” permitido pelo pico de 48 cv com o potente efeito de travagem do sistema de regeneração de energia.
A ponto de dispensar o travão em várias ocasiões. Negativo nesta brusquidão com que a moto desacelera é a ausência de um avisador na traseira, o qual poderia reduzir o risco de sermos abalroados.
Como é comum nas scooters, a C Evolution guarda sob o banco um espaço para arrumação do capacete, ainda que seja mais natural que aí arrumemos o cabo de recarregamento, para o qual existe um exíguo espaço à frente. Ainda menos espaço restará sob o banco se ali guardarmos o adaptador para os postos de carregamento na via pública.
Na cidade sentimos outra dificuldade, um já cliché dos eléctricos: a surpresa dos peões. Para se perceber o nível de “ruído” do silvo que nos acompanha, conseguimos ouvir as folhas de árvore que levantámos nas ruas. Nas manobras contamos com função de marcha-atrás, útil nesta moto de 265 kg (peso bem disfarçado em andamento) e para estacionar em plano inclinado agradecemos o bloqueio das rodas quando baixamos o descanso lateral.
O caro sai mais barato
Membro da família C, que inclui as scooters C600 e C650 GT, a versão eléctrica adiciona cerca de 5000 euros ao preço destas. Com garantia de cinco anos ou 50 mil quilómetros (km), a bateria, uma vez necessária a sua substituição, obrigará a um investimento na ordem dos 5000 euros. Convém, contudo, salientar que garantia não é sinónimo de esperança média de vida, tal como ocorre nos motores a gasolina. A cada 50 mil km serão necessários mais 166 euros para troca da correia de transmissão e, adicionalmente, a cada 10 mil km haverá verificações técnicas com custo entre 20 e 30 euros.
Na aritmética do consumo, ficámos assim: após 102 km percorridos com contenção – 80% a ritmo moderado em ruas e vias rápidas citadinas entre 50 e 80 km/hora (praticamente sem semáforos), acrescidos de 20 km repartidos entre auto-estrada (100 km/h) e estrada sinuosa (a ritmo elevado) – o computador indicou 6,8 kWh/100 km. A um preço de 0,164 euros por kWh (valor da ERSE para tarifa simples), o custo de 100 km foi inferior ao preço de um litro de gasolina.