Embarquei numa tarefa desafiadora e ousada ao redigir algumas considerações sobre o centenário de uma figura lendária, cuja magnificência, idealismo, profundidade cultural e intelectual são incontestáveis – Amílcar Cabral. Desde o início, reconheço a audácia e até mesmo a insolência literária em me aventurar nesta empreitada.
Explorar as múltiplas facetas e dimensões deste eminente líder – seja como estadista, revolucionário, poeta, pedagogo, ambientalista, feminista e outros papéis que desempenhou – certamente não revelaria nada de inédito. De igual forma, discorrer sobre o sucesso da sua luta e como a sua liderança singular inspirou uma geração de combatentes pela liberdade da pátria e delineou todo um pensamento revolucionário não representaria uma revelação surpreendente. Diante disso, resta-me indagar: o que posso abordar que ainda não tenha sido devidamente retratado?
Num contexto marcado por desafios profundos, como é o caso da Guiné-Bissau, propus-me a direcionar minha abordagem para uma perspectiva imaginária, contemplando a presença viva de Cabral e a realização dos seus ideais. Como agrónomo, Amílcar Cabral priorizou a autossuficiência alimentar como elemento central da sua estratégia para a libertação nacional e o bem-estar do seu povo. Durante o curso da luta, ele estabeleceu os Armazéns do Povo nas áreas libertadas, visando o abastecimento das populações, evidenciando assim o seu compromisso com o desenvolvimento socioeconómico e a emancipação da Nação.
As ideias que guiaram a luta de Cabral ainda aguardam realização plena, pois uma parcela significativa da população continua privada de acesso a necessidades básicas como água potável e uma alimentação adequada, enfrentando assim a escassez de três refeições diárias. Além disso, um número considerável de crianças em idade escolar é privado de um ensino de qualidade, enquanto mães grávidas enfrentam riscos graves, com muitas delas a perder as suas vidas durante o parto. Enquanto isso, o sistema judiciário permanece distante de ser verdadeiramente funcional, refletindo desafios persistentes no caminho rumo à justiça e à equidade.
Apesar do pensamento político e filosófico deste eminente líder ter sido amplamente reconhecido e invocado como um farol para a edificação de sociedades inclusivas e a celebração da riqueza da cultura africana, é verdadeiramente surpreendente que o seu próprio país permaneça estagnado em índices de desenvolvimento notavelmente baixos. Este paradoxo, ao qual nenhum observador atento pode ficar indiferente, suscita perplexidade e instiga a reflexão sobre as complexidades subjacentes aos desafios enfrentados pela Guiné-Bissau.
Estou convencido de que a determinação e a bravura do povo guineense, que Amílcar Cabral conseguiu mobilizar para libertar-se do jugo colonial, transcendem os feitos históricos evidenciados durante aquele período marcante. Essa mobilização não apenas conduziu à criação de um Estado independente, mas também desempenhou um papel crucial no fim do regime ditatorial na metrópole colonial. Tal legado de resistência e luta permanece como um testemunho vivo da resiliência e da busca pela liberdade que caracterizam o espírito guineense.
No entanto, não se evidenciam outras conquistas de magnitude semelhante à independência, que uniu todo um povo na sua busca por autonomia. Pode-se argumentar sobre a transição para a abertura democrática e o liberalismo económico como dois marcos significativos do período pós-independência. No entanto, do meu ponto de vista, essas conquistas são em grande parte impulsionadas por influências externas, especialmente pela queda do Muro de Berlim, e refletem mais o movimento democrático e liberal que permeava os países africanos do que propriamente uma ideologia ou visão de dentro para fora.
Nas reflexões em questão, busco apenas idealizar o tipo de sociedade que poderíamos desfrutar caso o “programa maior”, conforme concebido por Cabral, se concretizasse de forma prática. Amílcar Cabral, influenciado pela sua luta revolucionária e pelos ensinamentos de um dos grandes pensadores do século passado, Frantz Fanon, imaginava uma África não apenas livre e independente, mas também dotada de uma mentalidade completamente descolonizada, onde floresceria o que ele chamou de “Homem Novo”. Essa construção identitária idealizada por Cabral serviria como alicerce fundamental para a implementação da sua visão de Estado, dando origem a um país onde a justiça social, o progresso económico e o bem-estar coletivo prevaleceriam.
A inquietação lógica e realista expressa por Cabral em relação ao cidadão guineense, agora livre e independente, é notável. Ele vislumbrou um futuro em que, apesar dos desafios de desenvolvimento, esse cidadão não seria mais caracterizado pela privação social e espiritual, mas sim por uma aura de resiliência e determinação, impulsionada pelo seu sucesso económico e pela defesa dos valores universalmente reconhecidos.
Se Amílcar Cabral estivesse entre nós, poderíamos aspirar a um sistema educacional que se destacaria como um dos mais admirados na sub-região oeste-africana. Os guineenses seriam reconhecidos pelo mérito em todas as áreas da ciência, e questões como greves persistentes, dúvidas sobre a qualidade dos professores e a falta de tempo lectivo adequado não seriam motivo de preocupação. As infraestruturas escolares seriam abundantemente providas, assim como os materiais didáticos, eliminando a necessidade de os alunos se revezarem em turnos ou dependerem de “textos” que, na realidade, não passam de fotocópias de livros.
Se Amílcar Cabral estivesse entre nós, poderíamos esperar um sistema de saúde meticulosamente organizado e operante, resultando na preservação de inúmeras vidas humanas. Não seríamos testemunhas de discursos políticos demagógicos sobre as condições e funcionamento dos nossos hospitais, onde os pacientes são forçados a adquirir itens básicos como cateteres, seringas e oxigénio, e onde a falta de energia elétrica no bloco cirúrgico durante uma intervenção não seria uma realidade, o que distorce gravemente o papel do Estado na garantia da saúde pública.
Evitando o mero saudosismo, acredito firmemente que se Amílcar Cabral estivesse entre nós, testemunharíamos um sistema judicial que primaria pela objetividade, imparcialidade e, acima de tudo, pelo serviço às nossas comunidades. Não estaríamos enfrentar os desafios atuais do nosso sistema de justiça, e muito menos consideraríamos a possibilidade de interferência política nesse âmbito sagrado. A concretização da visão de Amílcar Cabral para a Guiné-Bissau não é uma utopia inatingível. Este sonho pode ser realizado se cada um de nós assumir o compromisso de transformar os seus ideais em realidade, e colocar o nacionalismo e o humanismo no centro das nossas ações, com foco no desenvolvimento do país e no bem-estar de todos os cidadãos.