Pelas janelas, um verde a que não se pode ser indiferente. São árvores e árvores que contrastam com o céu azul e o silêncio que rodeia a barulhenta fábrica da Fepsa – Feltros Portugueses, em São João da Madeira. Lá dentro, o ambiente fervilha e não é só pelas temperaturas altas a que a feltragem obriga: é pela cadência ritmada das máquinas, pelos movimentos sincronizados dos trabalhadores, pelos cheiros que se propagam e aumentam na humidade, pelos sons erráticos que de vez em quando se destacam no meio do ritmo que se faz ouvir. Aqui produzem-se 700 mil chapéus por ano, de lã ou de pêlo, e desses, apenas 2% ficam em Portugal. Mas nem sempre foi assim.
Nos primeiros anos de vida, entre 1969 e 1974, a produção de cerca de 350 mil unidades anuais era totalmente comercializada no país abastecendo as fábricas de acabamentos associadas e outros pequenos consumidores, revela a empresa no seu sítio na internet. “Com a revolução de 1974 a situação político-laboral dos anos que se seguiram alterou por completo a estabilidade conseguida. Sucessivas altas dos custos de laboração e das matérias-primas, o aumento das dificuldades financeiras da sociedade aliadas a uma redução drástica do consumo de feltros no país.” Constatada esta situação, a Fepsa decidiu voltar-se para os mercados externos, conseguindo após várias tentativas e adaptações, penetrar em vários países em concorrência com fabricantes de renome mundial. Hoje, praticamente toda a produção tem como destino o mercado externo, sobretudo o de luxo, onde conta com apenas “três concorrentes no mundo” e detém cerca de “40% de quota de mercado, revela à FORBES a presidente executiva da empresa.
Margarida Figueiredo representa a terceira geração da família que detém a Fepsa, e há dois anos que lidera os destinos da companhia, depois de em 2006 ter chegado à administração. Licenciada em Engenharia de Gestão Industrial, ainda passou por outras empresas, mas em 2002 passaria a dividir o seu tempo entre a Cortadoria Nacional – comandada actualmente por um dos seus irmãos, e à qual a Fepsa compra “quase tudo” em termos de matéria-prima – e a Fepsa. No fundo, estava apenas a seguir a tradição da família, que tem a indústria a correr-lhes no sangue, tanto do lado materno quanto paterno. É Margarida quem nos leva num passeio pela fábrica, saindo do silencioso gabinete em que passa parte do seu dia, e nos explica como a matéria-prima entra em bruto – ou em pêlo, no caso – e sai chapéu, num processo de feltragem que leva cinco dias, já contando com os tempos de repouso de que o material precisa.
Linha de montagem
São João da Madeira é desde há muitos anos a capital da chapelaria nacional. Desde meados do século XVIII que a população se dedica ao fabrico manual, caseiro ou de pequena oficina de chapéus de lã grossa. A primeira fábrica remonta a 1802 e em 1867 já existiam seis unidades fabris. Durante muitos anos a indústria chapeleira foi a principal fonte de riqueza de São João da Madeira. Contudo, na década de 1930, o sector enfrentou uma profunda crise, que foi gerada pelo desuso generalizado do chapéu, que fez com que as fábricas acabassem por se ressentir e os empresários passassem a apostar em novos sectores, como os chapéus de tecido, o calçado ou a borracha. Mesmo assim a produção de feltros acabou por ser centralizada em São João da Madeira com a criação em 1943 da Cortadoria Nacional de Pêlo e posteriormente com a criação da Fepsa em 1969 por seis fabricantes nacionais de feltros e chapéus. Desde então, a empresa cresceu e consolidou uma importante posição no mercado internacional, mas sobretudo local.
Das 210 pessoas que trabalham actualmente na Fepsa há muitas, mais do que os dedos de duas mãos conseguem contar, que lá estão há décadas. É o caso de António Resende, encarregado geral da tinturaria. “Temos condições de trabalho espectaculares. Já viu a quantidade de gente nova que temos aí? Eles também não querem ir embora”, conta-nos de sorriso no rosto. António tem 56 anos de vida e mais de 30 de Fepsa. Caminha em passo apressado para junto das máquinas de tinturaria, uma actividade que aprendeu depois de ter entrado na empresa como “serralheiro ajustador, ainda um miúdo”. Falamos entre o barulho ensurdecedor das máquinas que feltram o pêlo ou a lã, e vemos os chapéus a tomar forma pela força das máquinas em consonância com o ajustamento manual por que cada peça passa.
Dos cones gigantes que saem da máquina onde pela primeira vez o material é colocado, até assumirem a sua forma final, nenhum chapéu passa por um processo de corte, por exemplo. Os tamanhos são definidos por processos mecânicos, os moldes são medidos manualmente, um a um, e as máquinas já estão perfeitamente calibradas e ajustadas para saber que tipo de feltragem se quer, e que quantidade de matéria-prima devem receber para que no final o chapéu tenha as medidas exatas. “Nós desenvolvemos as máquinas aqui”, esclarece a responsável da empresa, recordando que a Fepsa não tem concorrentes nacionais, portanto não tem muitas alternativas neste campo. “E estamos sempre a olhar para elas, a perceber como as podemos melhorar, como é que podemos tornar os processos ainda mais fáceis”, conta. Isto significa que para cada um dos oito formatos possíveis de chapéu há pesagens e tempos já previamente definidos em cada parte do processo automático. Ainda assim, há muito que é preciso ser feito manualmente: é necessário procurar defeitos, virar as peças, confirmar a feltragem, garantir que as máquinas funcionam bem, colocar os cones nas formas respectivas, levar as peças à tinturaria, acabar individualmente cada chapéu e, no final, uma última confirmação de que não há defeitos no produto acabado – por norma, 3% da produção não pode ser comercializada. E não há máquina que substitua o Homem nestes processos, ainda que o possa ajudar a torná-los mais fáceis e rápidos.
Vender um topo de gama
Este ano, a Fepsa espera duplicar a sua capacidade de produção para dar resposta à procura crescente do mercado. Num negócio em que o maior risco é o aumento do preço das matérias-primas, Margarida faz questão de sublinhar que a empresa só trabalha com sub-produtos. “Nenhum animal é morto para que nós utilizemos o pêlo. Nenhum. Nós só aproveitamos a matéria-prima que, por algum motivo, já está disponível”. E explica: “no Canadá e no Norte dos EUA, por exemplo, o castor é uma praga. Há épocas de caça específicas para controlar a praga. As peles desses animais são depois leiloadas e é aí que é possível adquiri-las.” Antes de chegar à Fepsa, as peles passam na Cortadoria Nacional, onde a pele é separada do pêlo, que é depois tratado convenientemente. “O pêlo de coelho, por exemplo, que é o que mais usamos, é obtido exclusivamente através de animais que são abatidos para alimentação”, revela ainda a presidente da empresa. O que não é usado para feltrar segue para fins agrícolas, como por exemplo para a produção de fertilizantes, esclarece.
Transformar um sub-produto num produto de luxo pode parecer estranho, mas é mesmo isso que a Fepsa faz. A Maison Michel, por exemplo, que é o ramo da Chanel que se dedica exclusivamente aos chapéus, é um cliente de há muitos anos. Assim que chegamos ao escritório da presidente da empresa, percebemos que Nuno Baltasar é outro dos clientes – há fotografias de um dos últimos desfiles do estilista expostas nos móveis. A Fepsa viu também os seus feltros serem usados nos filmes de Indiana Jones, por exemplo – “foram vários chapéus” – e era também português o feltro que cobria a cabeça de John Dillinger (interpretado por Johnny Depp) no filme “Inimigos Públicos”. “Tivemos um cliente que nos disse, entretanto, que tinha feito chegar um dos chapéus que nos comprou a George W. Bush”, comenta Margarida quando lhe perguntamos se sabe por onde andam os seus feltros. E garante que reconhece sempre um chapéu saído da Fepsa. “Percebe-se pela qualidade do feltro”.
Quando a qualidade é a melhor publicidade
O pêlo representa, actualmente, 80% da feltragem da empresa, ficando a lã com os restantes 20%. Os preços dos chapéus podem variar entre os 6 euros (lã) e os 80 euros (pêlo de castor) a unidade. Entre os principais clientes estão os europeus. No entanto, “quando a crise se agravou, foi possível compensar a quebra europeia com o mercado norte-americano”.
Ao contrário do que se possa pensar, a Fepsa não tem comerciais espalhados pelo mundo, ainda que faça da exportação o seu sustento. “Os clientes procuram-nos.
Este mundo da chapelaria é pequeno, portanto, toda a gente nos conhece e sabe da nossa qualidade”, garante a actual presidente da empresa, que sucedeu ao irmão, Ricardo Figueiredo – hoje presidente da Câmara Municipal de São João da Madeira – na liderança da Fepsa.
Margarida refere que a estratégia e gestão seguida pela empresa tem sempre em vista as próximas gerações. “Acreditamos que algum dos nossos filhos vai continuar isto”, remata em jeito de brincadeira. “Os meus vêem para aqui várias vezes, já ajudam a colar coisas. Temos de os ir habituando”, atira com uma gargalhada. Foi, aliás, a pensar nesse futuro que a Fepsa adquiriu uma participação de 35% na Industrias Sombrereras Españolas SA (Isesa). “Não mudou coisa alguma na relação que já tínhamos com a Isesa, que vem de há muito tempo. Mas basicamente eles deixaram de produzir feltro e passaram a comprá-lo, apenas. Portanto, a aquisição da participação foi apenas uma forma de tornar esta nossa parceira mais fácil. A Fepsa continua a não ter qualquer palavra no quotidiano da Isesa”, sublinha.
Nos olhos claros de Margarida, o amor pela indústria é óbvio e quase palpável. A facilidade com que se move entre as máquinas que povoam a maior parte dos 7600 metros quadrados que compõem a sede da Fepsa, o sorriso que esboça quando passa a mão pelos feltros acabados de produzir e o gosto que tem em explicar todos os detalhes técnicos revelam o empenho que dedica à empresa da família.
Em cima da sua secretária minuciosamente arrumada, um chapéu cinzento – “este é meu, mesmo”, ri – contrasta com o branco da mesa. A cor, essa, é deixada para os corredores da Fepsa, onde tiras e tiras de feltro tingido ali mesmo servem de decoração e de lembrança constante de que tipo de negócios se tratam aqui.