Os últimos anos têm sido pródigos para o sector agro-industrial nacional. Seja ao nível do investimento, do valor acrescentado e da facturação, o sector tem registado taxas de crescimento muito acima da de outros e da economia.
A Novarroz é um exemplo dessa recente tendência. Nos últimos cinco anos, a companhia, de cariz familiar, liderada por Mário Coelho, aumentou o volume de negócios em 44%, para 35 milhões de euros, e assegurou presença em 54 países, um crescimento capaz de fazer corar qualquer start-up tecnológica.
Porém, o caminho do empresário da freguesia de Ul, no concelho de Oliveira de Azeméis, nem sempre foi doce.
Embora conhecida pelas indústrias dos moldes e do calçado, a cultura industrial de Oliveira de Azeméis remonta à década de 1940 e à actividade molinheira no rio Ul (também conhecido como Antuã).
“Só na freguesia de Ul, chegaram a existir cerca de 80 moinhos”, explica Mário.
Um deles era o do seu avô e foi nele que começou o negócio que o neto hoje lidera, embora com uma grande diferença ao nível dos riscos. Em 1985, a capacidade instalada das empresas da freguesia de Ul já representava 80% do consumo nacional de arroz, e a Saludães, a marca detida pelo pai de Mário, era líder de mercado. Porém, algumas começaram a fechar.
“O negócio continuava a ser lucrativo, mas nas empresas, sobretudo nas de cariz familiar, há outros problemas além do dinheiro”, afirma o administrador da Novarroz.
Na segunda ou terceira geração, os negócios viam-se confrontados com a necessidade de se modernizar e profissionalizar a gestão, mas muitos proprietários, em idade já avançada e sem descendência interessada em continuar o negócio, preferiram vender ou fechar as portas. Nessa época, já Mário lidava com o pai na fábrica da Saludães, cuja posição de líder de mercado lhe permitiu passar bem pela primeira fase de desafio para o sector, mas o mercado nacional começava a tornar-se apetecível para os colossos internacionais da indústria alimentar. Para Mário e para o pai, os grandes desafios estavam guardados para as décadas seguintes.
Investida estrangeira
Doce ou salgado, solto, malandrinho, de polvo ou cabidela, de pato ou de feijão. A gastronomia portuguesa é rica em pratos com arroz, o que se reflecte no consumo.
Cada português consome, em média, 16 quilos de arroz por ano, o valor mais elevado da Europa, o que torna o mercado apetecível para as empresas internacionais. A Saludães foi vítima desse sabor no início da década de 1990.
Em 1992, chegou de Espanha uma proposta do Grupo SOS para realizar uma parceria alicerçada numa troca de participações. Mário, na altura com 34 anos, viu a proposta com bons olhos.
“Era um negócio inteligente. Eles tinham o know-how que nós precisávamos para evoluir e tinham um grande projecto em mãos com o qual iríamos aprender imenso. Seria óptimo para criar sinergias”, explica.
Porém, a administração da Saludães recusou. “Eram visões diferentes. Eu via o negócio como o começo de algo novo, enquanto os administradores tinham outra visão, o que é normal”, diz. Mário sabe bem o que é trabalhar com diferentes gerações.
Hoje, além de trabalhar com parte da equipa que o acompanhou na Saludães, tem ao seu lado os dois filhos, André e Tiago. Os dois representam a continuidade e, em parte, a modernização da empresa, mas é frequente haver choque de ideias, algo que Mário e os filhos encaram com normalidade.
O “namoro” com os espanhóis manteve-se, mas, dois anos depois, a Saludães recebe uma proposta de aquisição de um fundo de investimento suíço e a administração decide aceitar. Mário não concordou, mas aceitou. “Era compreensível. A proposta era boa e o meu pai e os restantes sócios já estavam numa idade avançada”, explica, sublinhando, no entanto, que encarou o negócio como uma derrota. Afinal, tinha acabado de perder a marca líder no mercado nacional.
Sem grande espanto, pouco tempo depois da venda ao fundo suíço, Mário fica a saber que o mesmo tinha feito uma proposta de venda ao Grupo SOS. Os espanhóis recusam por considerarem o preço elevado, mas avisaram Mário e definem com ele uma estratégia que lhes permitisse aceder ao mercado nacional – e com isso nasce a Coelho e SOS. O objectivo de curto prazo era importar arroz de Espanha e lançar a marca “Arroz Coelho” em Portugal.
No longo prazo, os planos passavam pela aquisição de uma empresa portuguesa e ter uma fábrica em território nacional. Dois anos mais tarde, em função de má gestão por parte do fundo suíço e imposição dos seus financiadores, a Saludães volta à família Coelho, que fica com 55% do capital e os espanhóis com o restante.
A parceria que Mário se tinha esforçado para concretizar em 1992 materializava-se e, desta vez, com ele à frente da fábrica em Portugal (actual fábrica da Novarroz), e de uma fábrica na Holanda. Ao contrário do ditado que defende que, “de Espanha, nem bom vento, nem bom casamento”, a relação com os espanhóis foi sempre boa e produtiva. Porém, em 2008, na sequência da crise financeira mundial, começa mais um episódio difícil para o gestor.
A reconquista do mercado
Com o colapso da Bolsa, em pleno pico da crise financeira que assolou o mundo inteiro, o grupo SOS entra em insolvência e é executado pela banca, que vende o negócio do arroz à Ebro Foods – actual proprietária da marca “Cigala”. Contudo, Mário tinha uma opção de compra, o que o leva a iniciar uma batalha judicial para a qual não tinha perfil e que lhe deixou marcas profundas.
“Foi uma actividade interessantíssima”, diz com ironia, adiantando que ficou muito desgastado e que perdeu muito dinheiro.
A meio do processo judicial compra a posição do irmão que, talvez assustado com o risco, pede para sair da sociedade, e após dois anos de luta consegue o acordo possível. “Eles ficaram com a marca Saludães e eu com a fábrica.
Foi o negócio que mais me custou a fazer na vida, mas não tinha saída”, confessa. Pela segunda vez, Mário perdia a Saludães, que representava 60% da facturação, e a presença no mercado externo, que era conseguida através do grupo espanhol. Teria de começar tudo de novo, outra vez.
“Foi como ser empurrado para dentro de uma piscina sem saber nadar e ter que chegar à margem”, caracteriza.
Com o fim da parceria espanhola, as exportações estavam reduzidas a 4,5% da facturação anual e circunscrita aos países de língua portuguesa em África, e era importante não ficar dependente das “marcas brancas”. “Fizemos as malas e fomos à procura de novos clientes”, diz Mário.
Como parte do processo de reinvenção da empresa, começou por apostar nos mercados já conhecidos através do Grupo SOS, como a Argélia, Marrocos, e foi conquistando outros – em 2015, a Novarroz estava presente em 54 países e as exportações representavam cerca de 40% da facturação anual da empresa. Igualmente essencial neste processo de reinvenção foi a decisão de convidar os filhos a integrar os quadros da empresa.
“Isto faz-se com gente da casa ou com gente de fora”, disse-lhes.
André, licenciado em Marketing, então a trabalhar em Barcelona, ainda torceu o nariz ao arroz, mas tal como Tiago, que cursou Farmácia, acabou por abraçar o desafio e, juntos, traçaram o caminho que coloca actualmente a empresa entre os mais importantes players europeus do sector.
O primeiro passo da nova vida da Novarroz passou por ganhar dimensão. “Era preciso ganhar volume ou não conseguiríamos competir”, afirma Mário, sublinhando que o negócio do arroz tem margens muito reduzidas. Em Portugal, a solução passou por conquistar as grandes cadeias de supermercados.
“O peso das marcas brancas no mercado passou de 5% a 10% em 2000 para 60% actualmente”, refere. Hoje, a empresa embala arroz para referências próprias do Continente, Carrefour, Intermarché e Albi. “A força destes clientes é abismal e a matemática é implacável”, diz Mário, sublinhando que, ao mesmo tempo, que era necessário saltar além-fronteiras, conquistar novos mercados.
Todos os grãos contam
À medida que o negócio diversificava em geografias, André criava e potenciava as marcas. “É preciso ser inteligente e estar atento às tendências”, diz. Uma delas é a do sushi, sobre a qual o agora director de marketing conta uma história curiosa. “Tínhamos um cliente que não comprava o nosso calrose – variedade de arroz adequada para o sushi – porque a nossa marca não estava associada ao Oriente, mas comprava uma holandesa que, por acaso, eramos nós que embalávamos”, conta, a rir.
Hoje, a Novarroz comercializa 11 marcas próprias, que originam 60% do volume de vendas da empresa, e 75 marcas de outros clientes. Mas, para ganhar mercados e aumentar o volume, não basta fazer as malas e ir a feiras internacionais. É preciso ser competitivo, eficiente e estar acima dos standards exigidos – o que requer trabalho e investimento. Ainda que sob a égide da administração, Tiago tem tomado conta do assunto.
Apesar de farmacêutico de formação, Tiago preparou-se através de um curso de Lean Prodution, onde aprendeu técnicas de melhoria de eficiência que rapidamente implementou. Um deles foi o método Kaizen, uma filosofia que procura a melhoria constante das operações de uma empresa através da colaboração de todos os funcionários.
“Ao princípio estava um pouco céptico, mas depois vi os resultados e calei-me”, diz o pai.
Neste caso, não foi necessário investimento, pois o método consiste nisso mesmo: ganhar dinheiro sem gastar dinheiro. Porém, noutras situações foi necessário abrir os cordões à bolsa. Só nos últimos três anos, a Novarroz investiu 3,2 milhões de euros e até 2020 prevê aplicar mais 5 milhões de euros na capacidade de armazenagem e numa nova linha de produção.
Para o consumidor, a ciência do arroz vai pouco além da escolha entre um carolino e um agulha, mas para Mário, “o arroz é como o vinho ou pior”. No final do século, existiam cerca de oito variedades de arroz no mercado, hoje, são mais de vinte.
Em Portugal, existem cerca de 30 mil hectares de cultivo de arroz – orizicultura –, sobretudo variedades de carolinos e agulhas, divididos entre as bacias dos rios Mondego, Tejo e Sado, que originam uma produção média anual de 185 mil toneladas, cerca de 70% do consumo nacional. Na Novarroz, devido ao aumento do consumo de variedades mais exóticas, como o basmati, o calrose e o selvagem, por exemplo, e do incremento da procura de arroz vaporizado, muito usado pela restauração e hotelaria, cerca de 35% do volume transacionado é importado.
O mercado mudou muito desde que Mário se iniciou na indústria. Começou com o pai como patrão e agora tem os filhos como empregados. Dantes o mercado preferia o carolino, agora consome mais agulha, e o negócio era bem mais simples. Mas há algo que não mudou. Quase quarenta anos depois, a família Coelho continua a “acompanhar” muito bem com o arroz.