Assim que foi eleita presidente do CDS – Partido Popular, Assunção Cristas nomeou a sua prioridade: a reforma do sistema de pensões, que, garantiu, “irá falhar”. “Identificar um problema não é motivo de qualquer satisfação, mas é o primeiro passo para o resolvermos”, explicou no congresso em Gondomar, em Março.
A líder do partido disse que proporá um método de trabalho aos outros partidos para “estudar com profundidade” a solução.
O CDS não foi o primeiro a identificar o problema. Há quase quatro décadas que se sabe que o sistema de Segurança Social não é saudável e, apesar de várias medidas legislativas que possam ter atenuado ligeiramente a situação, o desequilíbrio persiste e ameaça as pensões dos portugueses. “Estamos permanentemente no limbo”, avisa Jorge Bravo, professor universitário na Nova Information Management School, da Universidade Nova de Lisboa, e um especialista na temática. “Nos últimos 15 a 20 anos só foram tomadas medidas avulsas que não resolveram o problema de fundo”, explica.
Em 1989, o governo liderado por Aníbal Cavaco Silva transferiu a receita extraordinária gerada com a transição para o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares para um mealheiro de emergência contra as futuras “dificuldades estruturais do sistema”. O objectivo do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) era acumular o suficiente para pagar, pelo menos, dois anos de pensões. Nunca aconteceu. Agora, o governo de António Costa estima que o FEFSS tenha cerca de 15 mil milhões de euros, o que não chega para um ano e um trimestre de pensões. “Prevê-se que [as transferências extraordinárias do Orçamento do Estado] possam rondar os 653 milhões de euros, em 2016, evitando-se assim o recurso ao FEFSS nestes anos de desequilíbrio financeiro do Sistema de Segurança Social”, lê-se no relatório que acompanha o Orçamento do Estado para 2016. Jorge Bravo questiona a decisão: “Se não é para pagar défices, então para que serve o fundo? A previsão [de acumular dois anos de pensões] é totalmente irrealista. Dependerá dos retornos da carteira.”
Não será a primeira vez que se fazem transferências extraordinárias do Orçamento do Estado para a Segurança Social para evitar mexer no FEFSS. Desde 2012 que se transferem cerca de mil milhões de euros por ano. “Eu próprio criei o Fundo [de Estabilização Financeira da Segurança Social], mas, se me perguntarem agora o que é, eu diria ‘sei lá!’”, exclamou Miguel Cadilhe, antigo ministro das Finanças de Cavaco Silva, na conferência “As Pensões e a Poupança em Portugal”, em Março passado.
Antes de serem conhecidas as projecções do actual governo, o Gabinete de Estratégia e Planeamento, inserido no ministério que tutela a Segurança Social, calculou uma aceleração acentuada das necessidades de financiamento. Em 2030, serão precisos mais de 6,5 mil milhões de euros apenas para pagar pensões. Mário Centeno, ministro das Finanças, criticou publicamente este estudo, que é anterior ao seu governo. Jorge Bravo, que foi um dos especialistas que participou no estudo do Gabinete de Estratégia e Planeamento, diz que os métodos usados nas previsões incluídas no Orçamento do Estado “estão completamente errados” e “não têm fundamento”.
Números bicudos
Em teoria, o sistema da Segurança Social é simples: quem está a trabalhar contribui com uma parte do vencimento para pagar as pensões e outras contribuições sociais, como o subsídio de desemprego. Quando precisar (na aposentação, por exemplo), a população activa pagar-lhe-á a sua pensão ou subsídio. É neste sentido que se diz que há um contrato entre gerações.
Na prática é mais complexo. Há outros custos a contabilizar – como as despesas administrativas e os encargos para a promoção do emprego – para que a máquina funcione. Além disso, há outras receitas, como as contribuições das entidades patronais e as transferências – correntes e extraordinárias – do Orçamento do Estado, que, naturalmente, são financiados pela tributação da população, actual ou futura (via endividamento público).
O governo estima que o sistema previdencial da Segurança Social gaste, pela primeira vez, 19,2 mil milhões de euros em 2016, mais de um décimo do produto interno bruto (PIB). As pensões de velhice, sobrevivência e invalidez são responsáveis por cerca de dois terços da factura.
Enquanto havia muitos trabalhadores a descontar para a Segurança Social, o problema mantinha-se distante. O número de pensionistas – mais de 3,6 milhões, segundo as últimas estatísticas – aproxima-se perigosamente do número de trabalhadores empregados – 4,4 milhões.
A baixa taxa de natalidade, o aumento da esperança média de vida e a emigração estão a pressionar os números da Segurança Social. A Comissão Europeia estima que a população portuguesa desça para 8,2 milhões de habitantes em 2060, uma população maioritariamente envelhecida e com pouca capacidade para o trabalho.
Cada cabeça, sua sentença
O problema do envelhecimento da população é transversal a toda a Europa e uma grande parte do mundo e a maioria das nações está à procura de soluções. A crise de refugiados, embora classificada como uma calamidade pelas autoridades europeias, pode aliviar a tensão de longo prazo da Segurança Social. “A Alemanha precisará de, em média, entre 276 mil a 491 mil imigrantes por ano de países fora da União Europeia em 2050” para equilibrar o mercado de trabalho, estimam Johann Fuchs, Alexander Kubis e Lutz Schneider da Universidade de Coburg, num estudo para a Fundação Bertelsmann.
A imigração pode ajudar, mas os especialistas sabem que não é a solução para o problema da Segurança Social. A campanha eleitoral que conduziu às últimas legislativas, em Outubro do ano passado, foi rica em ideias. Na ala esquerda, uma grande aposta foi no reforço do FEFSS. O Partido Socialista, que acabou por formar governo, propôs aplicar 10% do fundo em reabilitação urbana para criar um mercado de rendas acessíveis para as famílias mais carenciadas. As rendas seriam uma fonte de rendimento do FEFSS. O Bloco de Esquerda promoveu uma taxa de 0,75% sobre o valor acrescentado das grandes empresas, que daria 300 milhões de euros por ano. O Partido Comunista Português incluiu uma afectação de 0,25% de um imposto sobre as transacções financeiras, a ser criado, ao fundo.
No seu estudo publicado em Junho de 2015, o Gabinete de Estratégia e Planeamento estimava que o FEFSS precisaria de ter entre 139 mil milhões de euros e 294 mil milhões de euros para a Segurança Social ficar em equilíbrio de longo prazo, excluindo transferências extraordinárias do Orçamento do Estado. É cerca de dez vezes superior ao valor actual. Há, no entanto, sinais positivos. Pela primeira vez desde 2013, o Instituto de Políticas Públicas Thomas Jefferson-Correia da Serra, uma associação sem fins lucrativos que procura processos de decisão política mais rigorosos e informados, classificou o controlo das despesas com a Segurança Social previsto no Orçamento do Estado de 2016 como “satisfatório”. Ainda assim, a classificação, atribuída por um conselho científico de 15 especialistas, ficou aquém do obtido pelo Orçamento de 2011.
O Partido Social Democrata e o CDS–PP, que avançaram em coligação para as eleições, preferiram defender o chamado “plafonamento”. Através deste modelo, cria-se um limite salarial a partir do qual os trabalhadores no activo deixam de estar obrigados a descontar, em parte ou na totalidade para o sistema público de Segurança Social. A coligação não determinou o limite salarial, mas mostrou a intenção de as gerações mais novas terem “liberdade de escolha entre o sistema público e sistemas mutualistas ou privados”. O plafonamento representaria uma mudança de paradigma de um modelo de repartição (os trabalhadores e empresas pagam as pensões dos outros pensionistas) para um modelo misto, em que a pensão seria complementada por poupança aplicada em fundos de pensões públicos ou privados.
Durante a campanha eleitoral, o debate sobre o plafonamento foi aceso. O PS defendeu que a medida provocaria um buraco nas contas da Segurança Social no curto prazo. Jorge Bravo, da Nova Information Management School, explica que o plafonamento poderia fazer sentido na criação de raiz de um novo sistema de Segurança Social ou numa reforma de fundo. “Não é uma solução de curto ou de médio prazo, porque seriam criadas necessidades de financiamento”, afirma o professor universitário. “A ideia do plafonamento, como foi apresentada, só distorce a discussão sobre o futuro da Segurança Social.” Outra hipótese é mexer na taxa social única (TSU), isto é, na soma que os trabalhadores por conta de outrem (11% do vencimento) e as empresas com fins lucrativos (23,75%) descontam para a Segurança Social, mas pode ser impraticável no longo prazo.
Para cobrir todas as necessidades de financiamento das várias prestações sociais em 2060 será necessário que trabalhadores e empregadores canalizem, no conjunto, 46,07% da massa salarial desse ano”, lê-se no relatório do Gabinete de Estratégia e Planeamento.
Novos horizontes
Em 2013, a Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Patrimónios (APFIPP) publicou um estudo que concluiu que seria impossível manter o sistema de pensões sem uma mudança estrutural.
“O que aconteceu desde então piorou substancialmente tudo”, alerta José Veiga Sarmento, presidente da associação. “O que aconteceu foram cortes cegos e arbitrários nas pensões com o único objectivo de reduzir a despesa do Estado”, explica. “O poder político, confrontado com uma situação aguda de crise de financiamento do Estado, fez a parte fácil, que era cortar indiscriminadamente na despesa, independentemente da sua natureza e relevância social, martirizando de forma brutal a parte da sociedade mais desprotegida”, afirma José Veiga Sarmento. A proposta da APFIPP adicionava um regime complementar privado obrigatório e um regime complementar privado voluntário, conciliando “o papel de suporte social do Estado com a responsabilização individual de cada um na preparação da sua reforma”.
Muitas outras medidas já foram discutidas – incluindo o desvio de parte da receita do IRC, a eliminação das isenções da TSU,
a absorção das receitas das portagens, uma taxa empresarial sobre a elevada rotatividade dos funcionários, um imposto sobre heranças –, mas os efeitos seriam marginais. Certo é que as transferências extraordinárias do Orçamento do Estado não se conseguirão manter, porque, no longo prazo, não seria sustentável a geração de endividamento público.
As projecções não são positivas para os portugueses. Mesmo com o contínuo aumento da idade de aposentação através da revisão da esperança média de vida (a idade de reforma está agora nos 66 anos e dois meses para obter pensão completa e será de mais um mês em 2017), as pensões não serão suficientes para suportar o nível de vida na velhice.
Em 1989, Miguel Cadilhe, quando era ministro das Finanças do governo de Cavaco Silva, lançou, a par do FEFSS, os planos de poupança-reforma (PPR). Apoiados nos fortes benefícios fiscais – no início era possível deduzir o montante aplicado até 500 contos (2493,99 euros), desde que não se ultrapassasse 20% do rendimento bruto –, os PPR foram um sucesso comercial. Hoje, os planos de reforma têm cerca de 15 mil milhões de euros, um valor próximo da capitalização do FEFSS e, ao longo do tempo, os benefícios fiscais dos PPR foram cortados drasticamente: a dedução é, no máximo, de 400 euros, mas, na prática, o impacto fiscal é baixo, porque o benefício dos PPR concorre com outros, como as despesas de saúde e de educação.
Em 2007, quando era ministro do Trabalho e da Solidariedade Social do governo liderado por José Sócrates, José Vieira da Silva lançou os Certificados de Reforma, um sistema público de poupança voluntária para a aposentação. Através da adesão, os trabalhadores podem dirigir automaticamente 2%, 4% ou 6% dos vencimentos para os chamados “PPR do Estado”. Porém, o sucesso foi reduzido: em Fevereiro passado, o Fundo dos Certificados de Reforma tinha 36,6 milhões de euros.
Jorge Bravo defende um modelo como o introduzido no Reino Unido em 2008, que incentiva o aforro para a aposentação.
“Os trabalhadores com novos contratos de trabalho são inscritos obrigatoriamente num plano de poupança com contribuições dos próprios e das entidades patronais, mas podem optar por sair. Verificou-se que, pelo contrário, mais de 85% dos trabalhadores acaba por ficar.” O professor universitário explica que o regime foi bem legislado, incluindo limites às comissões de gestão e de custódia dos planos, “que poderiam deteriorar o rendimento futuro”.
Na conferência “As Pensões e a Poupança em Portugal”, Miguel Cadilhe desafiou o governo de António Costa a “pensar nas políticas que podem influenciar a propensão à poupança”. Para o antigo ministro, a actual taxa de poupança das famílias de 4% do rendimento disponível é insuficiente e são precisos incentivos ao aforro, como o próprio fez com o lançamento dos PPR.
Em Portugal, é nos PPR que os portugueses mais investem quando planeiam a reforma, mostra a sondagem conduzida pelo Instituto BBVA de Pensões, apresentada na conferência participada por Miguel Cadilhe. O estudo indica que 37% das pessoas que aforram para a aposentação começaram com PPR ou fundos de pensões. No entanto, 36% preferiu depósitos a prazo e 18% contas à ordem. “O aumento do peso da percentagem dos depósitos a prazo em detrimento dos PPR e dos fundos de pensões nos produtos de poupança para a reforma, que observamos na última sondagem do Instituto BBVA de Pensões, podem ser explicados não só pela enorme volatilidade dos mercados financeiros nestes últimos anos, mas também pela perda do referencial da inflação”, explica Adelaide Marques Cavaleiro, responsável pelo instituto. “O depósito à ordem ou a prazo é uma maneira simples de guardar liquidez, mas que não beneficia de nenhuma das características dos produtos de poupança longa, como os fundos de pensões ou os PPR”, avisa José Veiga Sarmento, da APFIPP. “Não é de todo a maneira mais adequada” de poupar para a aposentação.