“A cerveja Tagus tornou-se um signo do poder homofóbico. Quem a beber é cúmplice”.
Cáustico, o sociólogo e deputado do Bloco de Esquerda João Teixeira Lopes, não perdoou a campanha do orgulho hétero lançada em 2007 pela cerveja detida pelo Grupo Sumol. O clamor social chegou ao regulador da publicidade em forma de queixa e o Grupo Sumol recuaria, trocando a pergunta “Tu és hétero?” por um acabrunhado “a verdade é que és livre de escolher”.
O posicionamento irreverente, que incluiu a oferta de preservativos na compra de packs de oito garrafas e anúncios de TV puxando pelos atributos físicos de Soraia Chaves – que em 2007 protagonizou o filme “Call Girl” – é bem distinto da Tagus de hoje, produzida na fábrica que vemos junto à auto-estrada do Norte (A1) em Santarém.
Um edifício cuja dimensão é similar à da Central de Cervejas, em Vialonga, umas dezenas de quilómetros mais a sul e igualmente junto à A1, realça à FORBES Antoni Folguera, o director-geral da Font Salem, empresa que em 2009 comprou em hasta pública a Drinkin, fundada por José Sousa Cintra.
Os espanhóis acabaram por salvar um investimento que já tinha estado à beira da falência em 2006, quando Sousa Cintra vendeu a fábrica a Jorge Armindo, da Iberpartners. Mas se antes o nome Cintra cintilava no alto da fábrica, hoje poucos sabem o porquê de tanto camião a entrar e sair. “Como trabalhamos para marcas de outros, ninguém sabe quem fabrica”, tal como sucede nas duas fábricas de Puig e Salem, explica Antoni. “Se não é fornecedor ou relacionado a nível industrial, ninguém sabe o que é a Font Salem”, assume.
As marcas próprias Cintra e Tagus, esta adquirida à Sumol+Compal em 2012, não chegam a 10% da produção, ficando o restante para as bebidas comummente designadas de marcas brancas dos super e hipermercados, os quais têm ao dispor um cardápio de 15 receitas de cerveja para escolha.
Mediante a dimensão do cliente, este até pode pedir uma receita própria, como o proprietário da marca de cerveja Quinas – da qual parte dos 2 milhões de litros são feitos em Santarém –, admite à FORBES ter feito, misturando numa receita o melhor da Super Bock e da Sagres, explicou Sérgio Duarte.
O líder da operação de Santarém enaltece o facto de a empresa ter sabido encontrar o seu espaço num mercado em que as marcas próprias são ensanduichadas entre a Sagres e Super Bock.
Nesse espaço das marcas brancas cabem 30% do mercado de cervejas em Portugal, aquém dos 40% que Antoni perspectivava há 4 anos, numa entrevista ao Público. “Uma concepção um bocadinho errada”, admite à FORBES, e enviesada pela comparação com Espanha.
Dedução que também falhou nas cervejas sem álcool, que valem 10% do mercado total espanhol, mas apenas 1% do lado de cá. Seria necessário escoar 100 mil hectolitros, cerca de 8% da produção actual em Santarém (ou 5% da capacidade instalada, após o investimento feito no ano passado), para justificar a instalação da tecnologia para extrair o álcool.
Duelo de titãs
Seriam necessários 200 milhões de euros ao longo de 10 anos investidos em marketing para uma marca nova penetrar no duopólio da Sagres e Super Bock, e sem garantias, considera Antoni.
Dados da Nielsen de 2017 mostram que as dominantes valem 85% do sector. “É o poder das marcas”, diz Antoni.
Por isso, a forma de lidar com elas é “não concorrendo directamente com elas”. O foco está no core business da Font Salem, produção para cadeias de distribuição, as quais procuram a mesma qualidade e o mesmo lucro de quando vendem uma cerveja de marca, o que obriga a fábrica a reduzir custos de produção sem beliscar a segurança alimentar. E a viver com uma margem “nada comparável” à das líderes, afiança.
Produção de linha branca
Esta fábrica “não fazia muito sentido” numa óptica de marca própria, considera Antoni Folguera, o director–geral da Font Salem, nem para fabrico de marcas da distribuição apenas de Portugal.
Já para a Font Salem, a fábrica falida num terreno gigante e com a massa insolvente a gerir o que restava, era um pitéu, considerando a proximidade aos clientes oeste da Península.
Se a Cintra se cinge ao oeste de África e é tão residual que nem entra no portefólio de marcas assumido pela Damm (ao contrário da Tagus), as “marcas brancas” incluem refrigerantes para a Super Bock, a cerveja Argus, do Lidl, e produtos para a Sonae, Intermarché, Auchan, Minipreço e, em menor escala, para o Pingo Doce.
À América do Sul chega a Prima, marca da Font Salem usada pela Wallmart. Outra fonte de rendimento é o engarrafamento de bebidas produzidas noutras fábricas, sejam refrigerantes e as cervejas Sagres e Super Bock, seja uma sonante marca de Ice tea.
Tagus em mandarim
Adquirida pela Damm ao grupo Sumol+Compal em 2012 por 2,6 milhões de euros, a Tagus, criada pela Sumol em 2001 na Cereuro, em Viseu, entrou no grupo Damm com o intuito de desenvolver o mercado português, mas acabou por conquistar “um sucesso relativamente importante” na China, explica Antoni, quando um distribuidor local solicitou uma cerveja de origem portuguesa com história prévia e vendas em Portugal.
Dados de 2017 da associação do sector, Cervejeiros de Portugal, colocam na China cerca de metade das exportações de cervejas portuguesas. Na Tagus, a valorização da origem portuguesa é feita com a inscrição “Cerveja Lager de Portugal” no mesmo rótulo onde “lemos” as informações habituais da cerveja em caracteres chineses.
Porta aviões
À mesa na centenária “Taberna do Quinzena”, no centro de Santarém, perguntamos ao empregado se sabe o que é feito da “fábrica do Sousa Cintra”. O escalabitano só sabe dizer que “pertence a uns espanhóis”.
Quem a vê ao passar na A1 não imagina o quanto mudou desde que o Presidente Jorge Sampaio ali cortou a fita de inauguração a 31 de Maio de 2002.
Com 60 camiões a carregar e descarregar no Verão, os espanhóis da Font Salem querem ampliar o espaço de carga e parqueamento, mas, para tal, têm de se articular com a Brisa, concessionária da A1.
Para já, estão a construir a segunda tenda de 10 mil m2 a sul para armazenamento.
Tanques novos
Quando chegaram à fábrica, os espanhóis encontraram equipamento adquirido em segunda mão e, em alguns casos, obsoleto.
Dos 7 tanques de 2009, este ano chegar-se-ão aos 20, fruto dos 40 milhões de euros de investimento anunciados há um ano, com os quais se adquiriu a centrífugadora que acaba de chegar, para clarificar a cerveja.
O número de linhas passou de 3 (barris, garrafas e latas) para 7, e dos 3,5 milhões de hectolitros apresentados à agência de investimento AICEP como objectivo para 2021, 3 milhões já estão alcançados. “Nunca imaginámos que nesta altura estaríamos a fazer mais de 3 milhões de hectolitros com capacidade de 4 milhões, investimento de 100 milhões de euros na totalidade e facturação de perto de 120 milhões de euros no ano passado só em Portugal. Não acreditávamos que esta fábrica tivesse um sucesso assim”, assume Antoni.
Barreiras derrubadas
Perante as garantias que eram dadas pela Drinkin há 15 anos de que dispunha de capacidade instalada de 1,2 milhões de hectolitros de cerveja, Antoni lança uma gargalhada e assegura que “a fábrica não tinha de certeza [essa] capacidade”, a não ser numa perspectiva de investimento futuro como o que a Font Salem já fez, totalizando cerca de 85 milhões de euros.
E só com ele conseguiu alavancar a capacidade que em 2009 era de 250 mil hectolitros, número só atingido pela Cintra “no segundo ou terceiro ano de actividade” da Drinkin, desvenda Antoni, que recebeu a fábrica da comissão liquidatária a debitar 70 mil hectolitros de cerveja.
Na verdade, a Iberpartners, de Jorge Armindo, que adquiriu a Drinkin a Sousa Cintra em 2006 numa “situação financeira difícil”, como então designou, já tinha ido ao encontro do conceito de negócio da Font Salem: fazer cerveja para marcas de fora do perímetro da Drinkin. “Para mim foi a estratégia correcta, mas falhava o tamanho da fábrica”, considera o espanhol.
Faltava ao português a escala para ser competitivo na aquisição de matérias-primas, por exemplo. E, percebeu Antoni após a aquisição, o equipamento destoava do ar moderno da fábrica: logo à chegada, a Font Salem teve de injectar 5 milhões de euros em cima dos 15,5 milhões que pagou pela fábrica (acrescido de garantia do grupo Damm aos bancos que detinham a dívida), só para pôr a maquinaria e infra-estruturas a funcionar devidamente. A brassagem (sala de fabrico) “era pequena e não estava a funcionar”, tal como a linha de latas, e a sala de energia “não estava correctamente operativa”, explica.
Mas a estratégia que trouxe a Font Salem a Portugal também começou com o pé esquerdo: a cervejeira adquiriu a fábrica de Santarém para complementar as duas fábricas de Valência, esgotadas com o fornecimento de refrigerantes e cervejas à cadeia de supermercados Mercadona.
Contudo, pouco depois da hasta pública da Drinkin, a Mercadona decidiu mudar de fornecedor e Santarém sofreu por tabela com o regresso da produção que restava a Valência. Antoni não o diz, mas talvez a unidade escalabitana tenha sido salva pelos quatro anos de garantia de funcionamento que a Font Salem dera à autarquia aquando da aquisição.
O novo plano foi apostar na exportação e iniciar produção de refrigerantes. Grande vantagem da Quinta da Marrafa, José Sousa Cintra soube escolher um local com água boa e em abundância.