No subúrbio de Viana, no bairro da Estalagem, a FORBES encontrou uma casa com quatro compartimentos, onde três salas são usadas para o estudo e criação electrónica, robótica, reciclagem electrónica, programação, tecnologia espacial e aeronáutica, criação e animação 3D, criação de jogos e aplicativos, design, operações matemáticas, físicas e químicas, entre outras ciências e áreas tecnológicas. Os projectos são desenvolvidos por crianças e jovens com idades compreendidas entre 5 e 25 anos.
Estes jovens são conhecidos pela maioria, não são totalmente desconhecidos em Luanda. Têm apresentado projectos que têm sido das principais atracções nas feiras tecnológicas, como o ANGOTIC, que este ano não aconteceu devido a Covid-19.
Os Kandengues Cientistas, como são conhecidos, já criaram mais de 50 projectos de inovação tecnológica, como é o caso da produção de energia com frutas, produção de energia a partir da água salgada, automatização residencial (controlar electrodomésticos, portões e geradores com palmas, comando, telemóvel e desktop).
Desenvolveram também um sistema de controlo da sinistralidade rodoviária, controlador do nível de água e combustível, o capacete inteligente, o sistema de rega e secagem de produtos via telemóvel e a rede social angolana AngoHelpp, só para citar alguns.
Mas estes projectos são desenvolvidos em condições precárias. A FORBES visitou o laboratório improvisado que fica localizado no bairro da Estalagem, município de Viana, em Luanda, e constatou que as instalações carecem de melhores condições de comodidade. As paredes apresentam fissuras e o quintal não está pavimentado, isto sem falar das cadeiras que, para uma actividade que exige muito do cérebro, exige-se que garantam o mínimo de conforto.
Apesar da falta de condições e de apoio, os Kandengues Cientistas consideram que o gosto pela ciência venceu e tem vencido todas as barreiras, sendo que os mesmos têm provado que, por vezes, o mais importante não é o valor investido na ideia, mas sim o resultado que se obtém, buscando a cada dia resultados extraordinários, com soluções que ajudam a resolver problemas do quotidiano.
Inovação para o futuro
Preocupados com o crescimento e desenvolvimento do país, os jovens inventores têm apostado na criação de projectos que visam dar respostas rápidas às necessidades do mercado. É o caso dos projectos: Camponês Digital, pensado para apoiar o sector da produção agrícola através de um telemóvel. “Este sistema foi concebido para controlar toda actividade agrícola a partir do telefone, permitindo a inclusão de crianças e jovens no sector da agricultura”, disse o responsável, Pedro Paris.
Os Kandengues Cientistas são também os responsáveis pelo surgimento da rede social angolana, denominada “Angohelpp”, que permite que os usuários tenham acesso a propostas de emprego de acordo com as suas áreas de formação. Permite conhecer os pontos turísticos de Angola e encontros de trabalho em salas virtuais. A Angohelpp está disponível em três idiomas: Português, Kimbundo e Inglês.
Até ao dia que visitamos o laboratório improvisado, os Kandengues Cientistas encontravam-se envolvidos na criação de mais projectos, cuja conclusão está prevista ainda para este ano. “Estamos neste momento a desenvolver o aplicativo “Ngalakiambote”, que vai servir para dar solução efectiva aos problemas de diagnóstico médico de doenças e a respectiva sugestão fitoterapêutica”, revela Pedro Paris, que também desempenha o papel de formador de crianças com gosto pelas ciências.
Com a crise da Covid-19, os Kandengues Cientistas assumiram a linha da frente nas medidas de prevenção, com a produção de sabão e álcool em gel caseiros e criaram lavatórios que permitem abrir e fechar a torneira com os pés, evitando o risco de contaminação. “O sabão, o álcool em gel e os lavatórios tem como destino, e de forma gratuita, as comunidades carentes”, revela Pedro Paris.
Kandengues Cientistas clamam por apoio
São mais de 80 membros, entre crianças e adultos, espalhados em diferentes municípios de Luanda. Todos têm o denominador comum: inovação e criatividade. Os Kandengues Cientistas clamam por apoio para questões elementares, como o pagamento da renda do laboratório, materiais de trabalhos, melhores condições e segurança no laboratório, transporte e a compra do domínio do website, para que possam divulgar, de forma segura, as suas criações.
“Queremos crescer, ser uma instituição reconhecida e que ajude o país, sobretudo na inclusão social de menores, contribuindo para a redução do índice de delinquência, drogas e prostituição. Se conseguirmos ter em cada província um Centro de Ensino das STEM (Ciência Tecnologia Engenharia e Matemática), e se todos eles estiverem ligados e a cooperar em rede, dando a qualquer criança a oportunidade de aprender isso, será um sonho tornado realidade. Caso consigamos cooperar com outros países e trocar experiências e servir África, aí poderemos dizer que temos uma Angola melhor para os Kandengues Cientistas”, afirma o responsável.
O projecto “Kandengues Cientistas” é uma iniciativa da Tecnotronic Systems (Startup de base tecnológica), que forma e capacita crianças e adultos dos 5 aos 25 anos de idade, de forma a descobrir o potencial e as habilidades inventivas e tecnológicas das crianças, livrando-as de práticas incorrectas, tais como droga, prostituição e delinquência, além de ter como objectivo contribuir para uma sociedade angolana tecnologicamente bem preparada para os desafios do futuro.
Com três anos de existência, os Kandengues Cientistas têm até aqui transformado crianças e adultos em pequenos cientistas e técnicos profissionais de tecnologia de informação, preparados para dar soluções aos problemas das comunidades e de outros sectores.
O futuro é tecnológico
A Forbes conversou com José Garrido, consultor de Tecnologias de Informação, que considera que a iniciativa dos Kandengues Cientistas dotam as crianças de competências transversais, como pensamento crítico, criatividade, comunicação, colaboração, literacia digital, iniciativa entre outras valências que são fundamentais para que se adaptem facilmente a um futuro de trabalho muito incerto.
“Angola deve aproveitar e replicar iniciativas como estas para formarmos angolanos capazes e preparados para os desafios do futuro, pois os países que melhor souberem dotar as suas crianças destas competências serão aqueles que mais oportunidades e ganhos terão nesta nova era digital”
José Garrido acrescenta que iniciativas como a dos Kandengues Cientistas são importantes porque também contribuem para preparar profissionais resilientes doptados de capacidades empreendedoras, capazes de criar empregos e não apenas obter um emprego que é indiscutivelmente um tema relevante no contexto actual.
De acordo com estudos realizados pelo World Economic Forum, cerca de 65% das crianças de hoje trabalharão em empregos que ainda não existem, pelo que, terão de saber adaptar-se rapidamente para que não se tornem irrelevantes. “O sector privado tem procurado lançar iniciativas muito específicas e direccionadas às organizações, ao Estado ou directamente às famílias e que promovem este tipo de aprendizagem para além do ensino tradicional. No sector público, vários países deram início a processos de reforma dos seus sistemas de ensino, para investirem neste tipo de aprendizagem desde o sistema de base, para estarem aptos para responder aos desafios do digital e, naturalmente, posicionarem-se para liderar a revolução digital”, observa José Garrido.
Apesar dos raros apoios, quer financeiros ou materiais, os projectos ou associações constituídas por jovens inventores têm algumas vezes beneficiado de projectos de apoio ao fomento das suas invenções, através de parcerias com empresários, instituições de ensino superior, de investigação científica e desenvolvimento tecnológico
Em Outubro do ano passado, Angola esteve representada no Mundial de Robótica 2019, no Dubai. Os representantes de Angola ganharam visibilidade internacional devido ao trabalho que têm feito em trazer STEM (Ciência Tecnologia Engenharia e Matemática) nas comunidades em Angola, com destaque para as participações em diversas feiras tecnológicas e a iniciativa de levar robótica às escolas.
O Complexo Escolar Privado Internacional (CEPI) é um dos exemplos que evidenciam que o investimento e a aposta no talento dos jovens e adolescentes em Angola podem gerar bons resultados. O CEPI, fruto da inteligência, ousadia, investimento, confiança nos talentos dos seus estudantes, já conquistou 528 prémios em olimpíadas académicas nacionais e internacionais, sendo 129 medalhas de Ouro, 174 de Prata,185 de Bronze, 40 menções honrosas em diversos países como Brasil, Estados Unidos, Turquia, Quénia, Tanzânia, Indonésia, África do Sul e outros.
Os prémios foram conquistados na categoria de Robótica, Tecnologias de Inovação e Criação, Ciências, Língua Inglesa, Matemática e outras.
O longo percurso do sonho para a realidade
Em geral, as crianças são como diamantes brutos que devem ser lapidados. E é isto que o Projecto Kandengues Cientistas está a fazer. Há talentos a serem descobertos para as mais variadas áreas das ciências.
Rosária Lima Caju tem nove anos. Integra o clube dos Kandengues Cientistas há mais de 1 ano e é professora de tecnologia infantil. “Ensinar outras crianças a terem mais conhecimento sobre a electrónica e a darem os primeiros passos para a montagem de projectos electrónicos tem sido um desafio saudável e proveitoso para o meu próprio crescimento como inventora”, disse. Rosária participou também na concepção do projecto de produção de energia a partir de frutas e revela que, no futuro, quer ser uma cientista conhecida mundialmente na área de engenharia química.
Enoque Chavier da Silva pertence ao grupo há 1 ano. Com 10 anos de idade, é tutor de tecnologia espacial e actualmente está a trabalhar no desenvolvimento de um projecto de exploração espacial sobre o cultivo da mandioca no espaço e a possibilidade de construção de casas em órbita, usando as mesmas técnicas usadas para a construção de casas de adobe.
“Tenho feito o meu trabalho com muita dedicação. Ensino outras crianças a terem mais conhecimento sobre as tecnologias espaciais (satélites, foguetes e planetas) e exploração de outras formas de vida além do planeta terra. Fazemos foguetes de água, satélites em papel, maquetes do sistema solar e analisamos vídeos e desenhos”, disse.
Enoque Chavier da Silva mostra-se feliz por fazer parte do grupo e diz que no futuro gostaria de ser um engenheiro aeronáutico e especialista em tecnologias espaciais.
Fotos: Carlos César