“Data is king”.
A afirmação (de autor desconhecido) espelha a actual evolução das sociedades onde, mais do que nunca, a informação e o conhecimento estão entre os bens mais valiosos do mercado. O valor é de tal ordem que se tornou num negócio, num instrumento de análise, mas também de manipulação. Com o recurso à tecnologia, à Internet das Coisas, não há empresa que não reúna dados para fundamentar decisões de gestão, para conhecer melhor os clientes, para optimizar o negócio, ou, simplesmente para os comercializar. É aqui que entra a Pordata – Base de Dados de Portugal Contemporâneo e a sua responsável.
Maria João Valente Rosa começou por estudar Demografia, mas apaixonou-se pelos números porque “lhe dão segurança” e a ajudam a contar as histórias das pessoas. Curiosa e “muito irrequieta em relação à sociedade”, é uma das vozes mais respeitadas quando o assunto são estatísticas e uma acérrima defensora da importância dos dados na formação de uma opinião livre e fundamentada.
“É a partir dos números que cada um pode formar as suas opiniões sem pensar pela cabeça dos outros”, explica, sublinhando que são o garante da liberdade que tanto preza.
Criada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) em 2010, a Pordata agrega informação de 60 entidades oficiais num só site e apesar dos cerca de 5 milhões de euros de investimento realizados nos seus sete anos de existência, e de exigir anualmente 10% da dotação orçamental da Fundação, assenta num conceito aproximado do da “economia da partilha”.
A FFMS garante que a Pordata se manterá de acesso livre e sem quaisquer custos para o utilizador, para que todos possam ver que histórias contam os números. “Os números são o melhor ponto de partida para nos situarmos na sociedade em que vivemos e, a partir daí, construirmos o nosso caminho”, defende Maria João.
E foi isso que procurámos ao longo das mais de duas horas de entrevista que deu à FORBES.
Qual o caminho da educação, num mundo em sobressalto tecnológico; da sociedade onde escasseiam crianças e abundam velhos; e do futuro do Estado Social perante uma nova e inevitável realidade demográfica?
Já a ouvimos dizer que fica triste com as inverdades que correm na sociedade. São muitas?
Há muitas inverdades e muitas utilizações abusivas dos números, e é por isso que temos de estar muito capacitados para os saber ler e tirar as nossas ilações.
É preciso sermos sérios sobre as estatísticas para ler e entender a mensagem, porque os números não têm voz.
Não falam por si. Temos de ser nós a dar-lhes voz, temos de ser muito rigorosos no modo como os apresentamos, porque isso pode condicionar muito o modo como vivemos hoje e como viveremos amanhã.
Acha que os portugueses são pessoas informadas?
Acho que a informação existe, está disponível, e estamos muito melhor do que estávamos há algumas décadas. No entanto, se a informação cresceu muito, de uma forma exponencial, sinto que a nossa capacidade de a digerir e de a compreender não acompanhou o ritmo de crescimento. É um grande desafio das sociedades actuais, para as gerações futuras, e não sei se estamos a conseguir dar conta do recado. Ter mais informação não nos torna automaticamente mais sabedores. E a minha pergunta é se as escolas estão a trabalhar bem no sentido de ajudar a transformar informação em conhecimento.
E tem resposta para essa pergunta?
Suspeito de que não estejam a trabalhar verdadeiramente.
Não evoluíram ao mesmo ritmo da informação?
Claramente que não! Olhando para os currículos, para aquilo que se está a leccionar nas escolas e que é informação a que as crianças em casa chegam em dois segundos – saber qual é o cognome do I rei de Portugal, por exemplo… Pode ser extremamente interessante, mas rapidamente se chega lá via Internet. A escola continua a ser apresentada como um conjunto de disciplinas que nada têm a ver umas com as outras, e onde o conhecimento não está interligado. Hoje as crianças vivem com mundos cruzados, com muitos mundos em simultâneo, e essa segmentação é muito artificial.
E alternativas?
Este ano entrou na Finlândia uma reforma escolar em que as disciplinas continuam a existir, mas o que está em causa é a discussão de tópicos, por exemplo. Imaginem que há o tópico do aquecimento global: todas as disciplinas trabalham o aquecimento global, desde História a Matemática, passando pela Língua Materna…porque tudo está interligado.
O mundo das crianças é tudo! Prepararmos as crianças, os futuros adultos, para um mundo bem diferente, onde não é tanto a informação por si, mas o modo como a informação pode ser trabalhada tendo em vista o conhecimento – e não a acumulação de informação – é que pode fazer toda a diferença.
Estamos presos ao passado?
O Marçal Grilo uma vez falou de uma ideia muito interessante: se um médico tivesse morrido há 200 anos e agora ressuscitasse, chegaria a uma sala de operações, olhava para aquilo e diria que não sabia por onde começar nem como fazer uma cirurgia porque olhava para todo o lado e nada fazia sentido.Um professor que tivesse morrido há 200 anos, ressuscitasse e chegasse a uma sala de aula olhava para o quadro, para a disposição das cadeiras, e não se sentiria desconfortável. Conseguiria dar a matéria. Esta imagem é boa porque, no fundo, sugere que a escola não está a avançar ao ritmo da mudança social.
Isso afasta os jovens da escola?
Pode afastar. A escola acaba por não ser, para muitos jovens, o espaço de aprendizagem porque está muito distanciada do mundo em que vivem. Tem de implicar esforço e trabalho, mas é preciso que acompanhe a mudança dos tempos.
Os alunos querem repostas às suas inquietações, que muitas vezes passam pelo mundo digital.
Esse tipo de aprendizagem não está reflectida na escola. É preciso ensinar como se selecciona informação: qual a boa e qual a má. É isto que os jovens cada vez mais vão ter de decidir.
Isso não acontece com toda a sociedade?
A evolução tecnológica tem sido muito rápida. A sociedade está a mudar e a forma como nos organizamos em sociedade não está a acompanhar as mudanças deste mundo. Os números são, mais uma vez, importantes para nos darem essa noção das mudanças aceleradíssimas. Por exemplo, as famílias são bem diferentes. Hoje em dia, quando me falam em família já não consigo pensar nela no singular.
A família de hoje é diferente da de há 30 anos?
A chamada família clássica, tradicional, com pai, mãe e filhos continua a existir, mas não é a única, nem sequer a mais representada. Temos famílias que se vão complexificando nas várias formas. Em que há os meus, os teus e os nossos filhos; famílias monoparentais; famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo; famílias que não estão assentes na instituição casamento e em que as pessoas vivem em situação de união de facto. Lembro que em Portugal, actualmente, a maioria dos nascimentos já acontece fora do casamento, portanto entre pais não casados. Depois temos outras estruturas que começam a emergir, e a ganhar uma dimensão estatística muito significativa em Portugal, como as crianças que nascem e que são filhas de pais que não coabitam. Tudo é possível. Talvez o que esteja a resistir mais à mudança seja mesmo a forma como nos organizamos em sociedade, que não se muda por decreto.
As escolas são uma dessas estruturas?
Sim. A escola e a educação têm de ser repensadas: no nosso país, na Europa e até mesmo à escala global. Não podemos deixar isto para o futuro, porque são coisas que o podem prejudicar.
Outro sinal de mudança é a diminuição da natalidade. Por que é que há menos crianças?
Porque a sociedade se desenvolveu e o desenvolvimento é o melhor contraceptivo. Mas há vários factores: a mortalidade infantil diminuiu muito e as pessoas, a partir de certa altura, perceberam que os filhos que tinham conseguiam sobreviver ao primeiro ano de vida – Portugal tinha níveis de mortalidade infantil altíssimos. Por outro lado, a criança passou a ter outro valor. Deixou de representar uma garantia para sobrevivência na velhice e uma fonte de rendimento para a empresa familiar. Temos um aumento de escolarização associada à entrada das mulheres no mercado de trabalho, que já não o fazem por necessidade, mas porque querem. Mas a culpa disto tudo não são as mulheres! Há um aumento de expectativas profissionais, individuais, de enriquecimento dos projectos que faz com que o número elevadíssimo de crianças passe a ser substituído pela qualidade.
Qualidade da formação?
A criança passa a ser pensada como um projecto de vida que se quer o mais bem sucedido possível. Perde o tal valor económico e ganha um valor emocional e afectivo. A existência de métodos contraceptivos cada vez mais eficazes leva a que se consiga planear quando e quantos filhos se pretende ter. O desenvolvimento nestas várias vertentes faz com que possamos compreender facilmente por que razão os países mais desenvolvidos do mundo têm níveis de fecundidade mais baixos. Aliás, no mundo, os países mais desenvolvidos têm níveis de natalidade mais baixos e os menos desenvolvidos natalidade mais alta. E, na verdade, andamos preocupadíssimos com os níveis de natalidade mais baixos, mas que se há coisa que não falta são crianças: nascem, por dia, 400 mil crianças no mundo.
Por que é que na Europa são os países mais desenvolvidos a ter uma taxa de natalidade mais elevada?
Todos os países da União Europeia estão abaixo de 2,1 filhos por mulher, portanto não garantem a substituição de gerações. E esqueçam as descendências numerosas e os níveis do passado; não vão voltar a menos que se abra mão de uma série de conquistas e que queiramos regressar aos anos 1950. Por que é que nos países menos desenvolvidos têm menos filhos? Porque os países do Norte e do Centro da Europa foram os primeiros a registar descidas. E em Portugal há situações críticas, como a igualdade de género e a divisão de tarefas entre o papel de mãe e pai.
Como assim?
Em Portugal, a mulher afirmou-se no espaço público, mas continua no espaço doméstico a ter o mesmo papel que no passado, que é uma situação muito difícil de gerir. Os pais ficam com tarefas mais cirúrgicas que não implicam com o seu tempo e com o tipo de projecção que pretendem ter. O tempo das mulheres passou a ter que se dividir. Em 2013 fizemos um inquérito à fecundidade e a grande surpresa, para mim, foi que as gerações mais novas continuassem a reproduzir este modelo de uma profunda desigualdade dentro do espaço doméstico de partilha de responsabilidades parentais, muito em desfavor da mãe.
Isso tem que ver com a dificuldade social de mudar?
É muito cultural, sim. Mas significa que a mulher se confronta em Portugal com esta questão: ser boa mãe ou ser boa profissional? E isto tem implicações a vários níveis. Ter uma criança em Portugal custa muito – e não estou a falar a nível financeiro. Custa em termos de organização e de gestão de tempo. Quando se tem um filho é porque se quer ter um filho fantástico e maravilhoso. E isto recai muito sobre as mulheres, que fizeram um investimento muito grande na educação, nos seus projectos, na formação. As mulheres abandonam muito menos as escolas que os homens, estão a apostar muito na sua carreira, e a questão do tempo está muito mal resolvida entre nós.
Os homens não abdicam desse tempo?
Se um homem deixar de ir trabalhar porque o filho está doente, perguntam onde está a mãe. O pai fica mal visto. E há aqui uma certa cumplicidade das próprias mulheres que olham para essa mãe – na Alemanha, por exemplo, isso é crítico – como se ela fosse uma má mãe. No inquérito havia uma pergunta gira que era sobre qual a opção ideal de trabalho para um pai. No caso de qual era a opção ideal para uma mãe, homens e mulheres responderam: a mãe trabalhar a tempo parcial ou pura e simplesmente não trabalhar.
Mas também porque há poucas alternativas.
É verdade. Há países como França onde as pessoas deixam as crianças, desde muito pequeninas, nas creches sem qualquer culpabilização. Em Portugal as pessoas ou têm os pais próximos ou alguém que fique ou então onde é que deixam a criança? O primeiro filho é uma experiência muito forte para pais e mães, em especial para as mães, e isso condiciona a escolha pelo segundo. A desigualdade forte existente entre géneros, em Portugal, um baixo apoio à primeira infância associado a todas as outras questões do ponto de vista financeiro faz com que muitas vezes se fique pelo primeiro filho. Embora sejam muitas as pessoas que queiram ter um segundo.
Então qual é o verdadeiro problema da natalidade em Portugal?
Não é a falta de crianças, nem é o facto de os pais serem egoístas. O problema é que muitos gostavam de passar do primeiro para o segundo filho e não conseguem. Nós temos muita gente a ter filhos, tarde, mas a partir da primeira experiência não têm a segunda. Concretiza-se o sonho e o risco associado a uma segunda criança – desemprego, emprego, gestão de tempo – impede que ela surja.
A componente financeira não é relevante?
Também pesa, mas não tanto como se pensa. Se assim fosse não eram as classes mais baixas que tinham mais filhos. Na decisão sobre ter o primeiro filho não se pensa no dinheiro. Estar numa situação de desemprego ou subemprego influencia sim muito a decisão de ter filhos. E também a estabilidade conjugal. Ter um filho é um projecto de futuro, tem que existir confiança nesse futuro.
A carreira profissional também afecta a decisão?
A situação profissional é outra questão. É preciso sentir que o filho surge na altura que menos implicações tem na carreira profissional. É um dos factores que mais contribui para o adiamento da decisão.
Há uma altura mais propícia a ter filhos?
Não há uma altura certa, mas há uma altura psicológica, a do “é agora ou nunca”. Isto até uma certa idade, porque devido à diminuição da fertilidade da mulher, há uma idade a partir da qual já não se pensa nisso.
E qual é essa idade “psicológica”?
Depende do género e do nível de educação. Nas mulheres com ensino superior, a idade máxima é 33 anos. Nas mulheres com o secundário desce para 30 anos, e nas mulheres com o ensino básico para 29 anos. Ou seja, se uma mulher chega aos 33 anos e não tem filhos, é porque já não vai ter. Nos homens o limite de idade é de 35 anos para os mais instruídos.
A queda da taxa de natalidade acentuou no período da crise, mas em 2015 e 2016 houve uma recuperação. Porquê?
Eu diria que o aumento se deveu a nascimentos que foram adiados durante o período da crise, um pouco como se fossem projectos que foram adiados, guardados na gaveta, e assim que se recuperaram os níveis de confiança avançou-se com o “projecto filho”.
Isso significa que não acredita que a tendência de aumento se mantenha?
Não, nada indica que vá continuar. Julgo que este aumento recente do número de nascimentos se deve aos adiamentos dos anos anteriores.
Mas não devíamos todos ter filhos, até para mitigar problemas como o envelhecimento da população?
Ter filhos é uma decisão individual, não pode ser imposta por alguém em particular ou pela sociedade. É um assunto privado. Ninguém pode ser diabolizado por não querer ter filhos. E não se pense que os níveis baixos de fertilidade se devem exclusivamente às mulheres e que os homens querem ter muitos filhos. É uma decisão muito consensual entre os dois géneros. E não se pense que se desatarmos todos a ter filhos vamos resolver o problema do envelhecimento.
Se existirem mais crianças não será mais fácil resolver algumas consequências do envelhecimento como a sustentabilidade do Estado Social?
Não, porque as pessoas vão continuar a viver mais tempo e o número de velhos continuará a aumentar. Defender o Estado Social implica adaptá-lo aos novos tempos, à nova realidade demográfica, e não segundo as fórmulas do passado. Se insistirmos nas fórmulas do passado estamos a condenar o Estado Social.
É como a questão da educação, que abordámos há pouco…
Exacto. Como escrevi no ensaio da Fundação [Francisco Manuel dos Santos] sobre o envelhecimento da população, o principal problema das sociedades modernas não é o futuro, é o passado. Se nos mantivermos agarrados ao passado teremos um grande problema pela frente, porque se não quisermos repensar o Estado Social vamos condená-lo.
Estamos presos a uma armadilha demográfica?
A demografia não é culpada de nada, é um facto que resulta de uma evolução à qual a sociedade ainda não se adaptou. É como uma pessoa que era magrinha quando era nova e que foi engordando com a idade, mas quer continuar a usar a mesma roupa. Não dá. A roupa começa a ficar apertada até se rasgar e a pessoa fica ridícula. É o que está a acontecer. A demografia mudou e provocou uma série de alterações que nós não queremos ver. O envelhecimento da população é um processo inelutável, a menos que recuemos. Será que queremos mesmo recuar aos anos 1960, quando não tínhamos tudo o que não temos agora? Eu não!
Mas há muita gente que diz que “no tempo do Salazar é que era bom”?
As pessoas arranjam ideias em relação ao passado completamente deslocadas do que era a realidade. A taxa de analfabetismo, por exemplo, era de 26% na década de 1970! Uma em cada quatro pessoas não sabia ler e andava completamente à mercê dos outros, até para apanhar um autocarro ou para fazer outras coisas igualmente simples.
E nos outros países da Europa também era assim?
Não. No campo da alfabetização estávamos muito atrasados em relação ao resto da Europa. Em 1900, por exemplo, nos países do norte da Europa e nos países germânicos já a taxa de alfabetismo era superior a 90%. O passado tem coisas boas, como tudo, mas agora temos que encarar o presente e enfrentar os desafios que ele nos impõe. Regressando à sustentabilidade do Estado Social…
A fórmula de financiamento das pensões funcionava bem quando tínhamos a estrutura demográfica da década de 1960. A população era jovem, as pessoas viviam menos tempo. Agora os dados são outros. Não podemos continuar a entender que as pessoas têm de parar de trabalhar quando chegam à idade de reforma. Hoje, uma pessoa que chega à idade de aposentação não tem os mesmos atributos, competências ou conhecimentos que uma pessoa da mesma idade tinha há 20 ou 30 anos.
Mas as pessoas continuam a reformar-se assim que podem. Porquê?
É verdade. Apesar da idade de aposentação ser já superior a 66 anos, em 2015, a idade média de reforma dos trabalhadores da Caixa Geral de Aposentações foi de 61 anos e no regime geral da Segurança Social foi de 62,6 anos. Há vários factores que justificam esta antecipação. Um deles é o mito de que os velhos estão a ocupar o lugar dos mais novos: a sociedade não é um circuito de vasos comunicantes em que um novo substitui o velho, e a taxa de desemprego jovem não baixa porque os velhos saem dos seus postos de trabalho. Por outro lado, as pessoas saem porque se fartam, o que é natural, porque apesar de irem evoluindo na carreira, os seus interesses vão mudando e acabam por cansar-se do que estão a fazer. Mas isso é saudável.
O problema é que as pessoas não se preparam para ter outra vida, porque enquanto estiveram ali naquele lugar, a desempenhar aquela profissão, fizeram-no a 200%, e não puderam preparar-se para a mudança. Depois, rapidamente se apercebem de que a reforma é uma espécie de presente envenenado. Perde-se uma série de vínculos, por vezes a respeitabilidade, começam-se a ter poucas histórias para contar e passa-se a viver do passado: do que foram e do que fizeram.
E aí surge o problema.
Sim. Ao fim de dois ou três anos há vazio e as pessoas começam a pensar em projectos novos, mas a sociedade não lhes permite, porque se convencionou que a partir dos 65 anos não têm qualquer utilidade porque não têm capacidade de aprendizagem, e começa um grande problema: o desperdício enorme de capital humano.
“Ter filhos é uma decisão individual, não pode ser imposta por alguém em particular ou pela sociedade. É um assunto privado. Ninguém pode ser diabolizado por não querer ter filhos.”
Como se resolve esta questão?
Andamos sempre a mexer a idade de reforma, nas contribuições e no valor das pensões, há imensos anos. Mas estas variáveis são meros “paliativos”. Temos que transformar os velhos, que são vistos como passivos, em activos. Tem de existir uma organização do ciclo de vida diferente da actual que assenta em: formação inicial, trabalho quase toda a vida e lazer na reforma. Agora a formação tem que acompanhar o ciclo de vida, e o trabalho não pode ser tão intenso na fase central e deve prolongar-se. Hoje, o ciclo de vida está centrado no trabalho. Temos de centrá-lo no conhecimento.
É preciso gerir melhor o tempo?
Sim, não podemos avaliar os indivíduos por atributos como sexo, nacionalidade ou idade e deslocar a importância do tempo para a avaliação. Nós, fruto sobretudo das baixas qualificações, valorizamos muito o tempo que estamos no local de trabalho em detrimento do mérito. A pessoa que passa mais tempo na empresa é muito mais valorizada e vista como mais aplicada.
Acha que a actual geração dos 50 anos está a preparar-se para esta nova realidade?
Não, porque não tem condições para o fazer. Há pouca oferta de trabalho em part-time e uma cultura de muitas horas de trabalho que não deixa tempo para mais nada, nem para ter filhos. Mas é uma filosofia errada e os dados mostram-no. Estamos entre os países da Europa onde se trabalha mais horas, mas onde menos se produz.
E as empresas estão a contribuir para a adaptação? Há números sobre a empregabilidade de reformados com mais de 65 anos?
Há. Não os sei de cor, mas a taxa de empregabilidade depois dos 65 anos é baixíssima. As pessoas sabem que não têm grandes hipóteses e passam a inactivos/reformados. Se existissem hipóteses e razoáveis, seria diferente.
O Estado devia estimular a sua contratação?
Poderia ser uma fórmula. E ao contrário do que se pensa, não iria prejudicar em nada os jovens. O conhecimento não tem idade. Não podemos avaliar um indivíduo por atributos como a idade, o sexo e ou a nacionalidade, mas pelo seu conhecimento. A discriminação de género quase já não existe – embora existam depois outras formas de discriminar os géneros –, mas há discriminação etária. Estamos a desvalorizar o bem mais importante da sociedade, as pessoas. E a sociedade não se faz de costas para elas. Não podemos ver os velhos como passivos. Se os deixarmos participar activamente na sociedade, estou convicta que a coesão social melhorará.
E qual é o papel das migrações na actual equação demográfica?
São um fenómeno que pode ter um papel equilibrador. Em Portugal, por exemplo, temos menos de 4% de população estrangeira residente, mas que é responsável por cerca de 10% dos nascimentos. Há um contributo importante, porque tem impacto na base e no meio da pirâmide demográfica, porque são pessoas em idade activa. Mas é preciso encarar as migrações sem preconceitos. Temos de ter uma lógica e uma forma de olhar para o problema e definir se é ou não uma ameaça, não nos detendo apenas no presente. Numa óptica europeia, o contexto é o de existirem cada vez mais “outros” e menos “nós”. Vamos ter que aprender a lidar com isso.