Recorda-se da crise dos nitrofuranos? Em 2003, o sector de produção avícola tremia com este nome. Os antibióticos proibidos que espalharam o terror entre consumidores, autoridades e produtores provocaram aquela que é considerada a maior crise recente no sector avícola. Pouco tempo depois, o escândalo rebenta e faz estragos.
Foi um pesadelo para muitas empresas do sector. Muitas acabaram mesmo por fechar as portas por conta de uma queda superior a 60% das vendas. Não foi o caso da Lusiaves, que aproveitou a crise para crescer.
Avelino Gaspar, o fundador, recebe a FORBES na sede da empresa, na localidade de Meirinhos, em Leiria. Num gabinete recheado de construções Lego – uma espécie de “armazém” do seu filho mais novo -, o comendador fala-nos, de voz baixa e pausada, sobre as um dos momentos mais importantes para o negócio que lidera há cerca de 30 anos.
“As pessoas deixaram de consumir frango”, recorda o empresário sobre esta crise relacionada com a introdução misteriosa na cadeia alimentar de um antibiótico cancerígeno proibido pela União Europeia. “Alguns carros de distribuição dos nossos concorrentes foram apedrejados na rua. Houve concorrentes que tiveram de descaracterizar os carros, pô-los todos brancos. Houve uma revolta junto dos consumidores portugueses por estragarem um produto tão bom. De repente, criou-se desconfiança”, relembra Avelino.
Desconfiança essa que culminou com uma ordem do ministério da Agricultura, então liderado por Armando Sevinate Pinto, para ser retirada do mercado carne suspeita e proceder-se ao abate de milhares de animais em mais de uma centena de explorações.
Avelino e a sua equipa perceberam que tinham nesta crise uma oportunidade de acelerar a mudança que desejavam para a empresa. Desde a década de 1980 que a empresa de produção avícola aperfeiçoou a sua actividade, aumentando regularmente a capacidade das instalações, investindo em tecnologia através da aquisição de equipamentos e fazendo sucessivos aumentos de capital.
Quando chega a crise de 2003, a Lusiaves já tinha todo o processo controlado e certificado. Como as entidades oficiais portuguesas sancionavam a qualidade do produto, Avelino aproveitou a oportunidade para se lançar no mercado internacional.
A necessidade de escoar o produto – já que a queda no consumo em Portugal foi vertiginosa – levou a que a Lusiaves conhecesse o mercado de exportação: “começámos com Espanha, onde íamos levar camiões e camiões de produto muito barato, com um prejuízo muito grande, mas que nos permitia aliviar as explorações, tirar os animais, continuar o percurso normal” da cadeia de criação.
Hoje, as exportações representam quase 10% da facturação da empresa, que vende para vários países europeus e ainda Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, Serra Leoa e territórios como Macau.
Para continuar a crescer, a administração da empresa decide realizar em 2003 dois aumentos do capital: um em Maio, para 7,5 milhões de euros, e outro em Novembro, para os 10 milhões de euros. Adquire, por 10 milhões, a Campoaves, especializada em frangos do campo. Torna-se, ainda, numa sociedade anónima. A produção de frangos aumenta para os 8500 por hora.
“Se nós não tínhamos contaminação nenhuma, se os nossos produtos eram garantidos, a nossa marca tinha que se sobrepor às outras. Passado poucos dias, começámos a ocupar o espaço que os outros deixavam. Num curto espaço de tempo éramos quase os únicos a oferecer produto no mercado. O ano correu muito mal no 1.º semestre, mas no 2.º semestre foi muito bom”, recorda o empresário.
Pintainhos num anexo
A Lusiaves é uma das maiores empresas do centro do país. Mas tudo começou de forma muito modesta no início da década de 1970. O actual líder da Lusiaves trabalhava como administrativo num escritório de um comerciante de rações, depois de ter estudado na Escola Comercial de Pombal.
Só conseguiu continuar a estudar, explica, porque lhe foi atribuída uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian e porque tinha poupado antes ao trabalhar durante as férias de Verão numa fábrica de cerâmica e na construção civil. Nessa fábrica de rações, “comecei a envolver-me neste ambiente agro-alimentar e surgiu a ideia de, em part-time, começar a criar uns pintainhos”, diz.
Avelino começou a criação de aves como um “complemento salarial, havendo pouco dinheiro”. Foram 300 os pintos que comprou nos idos de 1975 e que alojava num anexo na casa dos seus pais.
“Faço as contas diariamente, vou acompanhando os vários negócios, e chego ao fim do dia e verifico que não sei onde estou a ganhar dinheiro. Acho que estou a perder dinheiro em tudo”, graceja Avelino Gaspar.
Esta primeira criação foi “o embrião que me permitiu perceber que podia ser um negócio de futuro numa altura em que as produções industriais eram baixas no nosso país e em que o consumo tinha começado a crescer por força do regresso dos chamados ‘retornados’” e “pelo aumento do rendimento disponível das pessoas” após a Revolução, recorda. Acumulava a criação em casa com o escritório, o que o obrigava a uma jornada de trabalho a duplicar.
Após negociações muito difíceis com os pais, construiu o primeiro aviário de rés-do-chão e primeiro andar, enquanto ia montando outros negócios: adquiriu em sociedade com um cunhado um lote em Leiria para a construção de um prédio. O empreendimento correu bem, encaixou o lucro, e investiu em mais projectos na área da construção e do imobiliário.
O negócio das aves foi crescendo a passos largos e, em 1986, Avelino resolve fundar formalmente a Lusiaves. Com esta decisão, deixou para trás a vida de administrativo por conta de outrem, a aventura no imobiliário, e passava a concentrar-se exclusivamente no negócio que tinha começado num simples anexo para fazê-lo crescer.
O sucesso foi tanto que em 2015 foi condecorado pelo antigo Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, que lhe atribuiu a Comenda de Mérito Industrial.
Financiar o crescimento
A aposta na verticalização da actividade é uma das grandes alterações da Lusiaves em toda a sua história e que contribuiu sobremaneira para atingir um novo patamar: actualmente, desde o milho que se dá às aves, produzido internamente, até à logística, através de uma frota própria, tudo é feito dentro de casa.
O controlo de todo o processo tem como objectivo assegurar a qualidade do produto final. “Faço as contas diariamente, vou acompanhando os vários negócios, e chego ao fim do dia e verifico que não sei onde estou a ganhar dinheiro. Acho que estou a perder dinheiro em tudo”, graceja.
“Mas quando nós fazemos a consolidação verificamos que há algumas poupanças que se vão criando com as sinergias” e florescem os lucros.
A estratégia de crescimento da Lusiaves tem andado de mão dada com o investimento.
À FORBES, Avelino revela que sempre financiou tudo com recurso a crédito. “Nunca comprei nada que tivesse dinheiro para comprar”, diz, com uma gargalhada.
“Quando eu comprei as instalações onde está hoje a Lusiaves, foi exactamente isso: comprei e não paguei nada. Não tinha dinheiro nenhum…” Tudo à base de “letras e cheques”, que ia pagando com o dinheiro que o negócio ia gerando.
Mas ressalva: “tudo o que pedi paguei sempre”. Hoje, a empresa de Avelino já não recorre a “letras”. Prefere outro tipo de instrumentos financeiros.
Em Janeiro deste ano, a Lusiaves realizou a primeira emissão obrigacionista. Foram 25 milhões de euros com uma maturidade a 10 anos, com cupão de 1,0625%. Segundo Avelino, tratam-se de condições “bastante atractivas” face às que obteria junto da banca.
O montante angariado tem como objectivo criar músculo financeiro para levar a cabo um plano de investimento no valor de 100 milhões de euros a serem aplicados na próxima década no reforço da internacionalização do grupo.
A meta é que as exportações passem a representar 20% nos próximos anos. E para isso, diz, “temos que aumentar a capacidade de todas as unidades em toda a cadeia” e “conseguir produzir a preços competitivos” num negócio com margens muito baixas.