Quando Pedro Manuel foi contactado em 2013 pela indústria conserveira para o desafiar a desenvolver uma rede tecnológica de gestão de uma frota pesqueira africana, a sua mente viajou mais de três décadas no tempo, até aos dias em que, com cinco anos, ia com entusiasmo, ao lado do pai, para a Foz do Arelho lançar o anzol para apanhar robalos, linguados, enguias e o que mais a vontade do mar quisesse.
Era o tempo em que o então garoto Pedro entrava no carro e rumava a Peniche, na companhia do pai quando este, por ser o responsável de telecomunicações da Portugal Telecom para a região Oeste, era chamado em SOS para resolver algum problema com o telex de uma fábrica de conserva, em momentos em que essa empresa precisava de fechar um negócio ou validar uma exportação. “O dono da fábrica oferecia-nos um punhado de sardinhas frescas. Aquilo fascinava-me!”, recorda Pedro.
O mais notável para o agora adulto Pedro (45 anos) foi como um desafio de trabalho presente se cruzava com algo que o marcara, na década de 1980. E o convite vindo do Gana levava-o a tirar do baú aquela sedutora combinação: tecnologia e pesca.
Formado pelo ISEL em Engenharia Electrónica e Telecomunicações, Pedro, que co-fundara a start-up Makewise e trabalhou num projecto de reconhecimento automático de matrículas de veículos com outros quatro engenheiros informáticos, reúne a sua equipa e cria a Bitcliq.
O cliente ganês – o seu primeiro – é logo de grande dimensão (30 mil toneladas de pesca/ano), abarcando toda a cadeia de valor da indústria pesqueira, das capturas do peixe (atum) até às fábricas de transformação do pescado em produto final para venda.
O software levou dois anos a desenvolver. Através dele é possível ligar as embarcações em tempo real ao centro de decisão em terra.
Porém, em termos tecnológicos, estava “na idade da pedra”. Quem ficava em terra a controlar as operações dos seis navios de mais de 50 metros que andavam na faina, cada um com 40 homens a bordo, durante dois ou três meses no mar alto a armazenar várias toneladas de pescado, geria as operações com base em anotações manuscritas em papel, folhas Excel e dispendiosos telefonemas por satélite.
Informação pouco organizada para quem precisava de tomar decisões críticas para o negócio. O sistema delineado pela Bitliq para contornar todos estes desafios foi a plataforma Big Eye, cujo nome vem da espécie de atum “Big Eye” pescada no projecto inicial no Gana.
O software levou dois anos a desenvolver. Ficou montado em 2015. Através dele é possível ligar as embarcações em tempo real ao centro de decisão em terra, graças ao fluxo de informação para o gestor tomar as tais decisões críticas, como saber se o barco deve mudar de área onde lançou as redes ou se deve até regressar ao porto. “Conseguimos pôr na ponta dos dedos do decisor, na hora, e em gráficos, os KPI’s [Key Performance Indicators]”, declara Pedro.
O gestor, em terra, sabe a cada instante quanto vale uma espécie, a margem de negociação que está a obter e a projecção de custo operacional da viagem: “Tendo uma oferta de compra para o produto que está no porão, sabe-se se se está a fazer um bom ou mau negócio e quanto é que está a custar a operação por tonelada. Até aqui, só ficavam a saber isso quando o barco chegava à lota”.
Pedro explica que estes dados permitem ainda que o armador, mediante a bolsa de valores do pescado, instrua os barcos a pescarem uma espécie em vez de outra.
O Big Eye é a estrela maior da Bitcliq, e foi em grande parte ao seu potencial que, em Fevereiro, a empresa de Pedro captou 600 mil euros de financiamento numa ronda de investimento, que foi liderada pela Indico Capital Partners, com a participação da LC Ventures. Este dinheiro servirá para concluir a implementação do primeiro marketplace global de peixe baseado em blockchain.
O projecto piloto está a decorrer em cooperação com várias parceiros e entidades oficiais, como a Docapesca, empresa estatal grossista e entidade que garante a qualidade de todo o peixe vendido em Portugal.
Rastreabilidade do pescado
A importância da qualidade dos produtos alimentares e da forma sustentável como são obtidos levou a Bitliq a incluir na sua plataforma a rastreabilidade do pescado. Assim, toda a cadeia relacionada com o produto piscícola passa a ter informação sobre a sua origem, se as espécies foram capturadas em zonas permitidas, resultado de pesca ilegal ou até se foram apanhadas numa área onde houve um derrame de petróleo.
A equipa, que começou apenas com engenheiros informáticos, é agora multidisciplinar, tendo igualmente biólogos marinhos que trazem um aporte científico daquilo que são as espécies pescadas e de análise ao seu grau de frescura e saúde.
Quando o barco atraca, o software Big Eye monitoriza o desembarque do produto, com os contentores, onde o pescado é colocado para o seu transporte, a serem identificados com uma referência, correlacionando-os com o local da captura no mar, o sítio e hora do armazenamento e o seu peso.
“O consumidor final quer fazer escolhas informadas do que consome na qualidade alimentar e na origem do produto.”
Este sistema permite que se faça o rastreio posterior da carga, para que se saiba o tempo que demora até ser entregue. A informação permite fazer prova que um armador não fez capturas em áreas protegidas ou interditas, possibilitando a extracção de análises de dados visuais que mostram onde houve mais bycatch (peixe que não é o alvo da operação e que também vem à rede).
Para garantir a blindagem do sistema e evitar que, à posteriori, os dados sejam adulterados, o Big Eye trabalha numa arquitetura de blockchain. Esta tecnologia de rastreabilidade estará visível ao consumidor português ainda este ano, já que a Bitcliq está a desenvolver um módulo de uma etiqueta inteligente no peixe (fresco, congelado ou em conserva) para o retalho, que será um QR Code que poderá ser lido pelo público no smartphone, com informações sobre o produto. “O consumidor final quer fazer escolhas informadas do que consome na qualidade alimentar e na origem do produto”, diz o gestor.
Após o Gana, a Bitcliq conseguiu contratos de gestão de frotas pesqueiras em França, Seychelles, Tailândia, Peru e EUA, com cerca de uma dezena de clientes. Para Portugal, a Bitcliq adaptou o conceito do Big Eye, desenvolvendo um projecto para melhorar a venda do pescado a que chamou de lota digital.
Esta ideia consiste em usar a tecnologia para associar um barco ao comprador, permitindo que o pescador, enquanto está na faina, possa começar a vender o peixe que apanhou e ganhe tempo (e dinheiro) no processo de venda, já que na lota os leilões são decrescentes.
Este projecto terá como públicos-alvo, de um lado, os cerca de 4 mil barcos nacionais registados e, de outro lado, os agentes de primeira compra de peixe (peixeiro, grossista, retalhista, hipermercado, chefs, supermercado biológico ou restaurante).
Este ano, durante seis meses, a Bitcliq terá um teste piloto em Peniche, com dez barcos ligados à doca. A ideia é que se estenda para o resto do país e a outros mercados dentro e fora da Europa, como EUA.
O mar parece não ter limite para esta empresa sedeada nas Caldas da Rainha, que arrancou com cinco pessoas e que agora, com doze funcionários e a facturar cerca de 300 mil euros conquistou já o interesse de duas firmas de capitais de risco, cujo milhão de dólares investido permitir-lhe-ão lançar a rede para mais negócios.