Assim que chegamos, o silêncio e a tranquilidade opõe-se ao ritmo frenético e ao cansaço de quem acabou uma longa viagem. Ali, entre o azul do rio, o verde das árvores e o amarelo que se destaca nas construções, tudo é sossego.
Para lá das portas da quase bicentenária fábrica de porcelana da Vista Alegre – “ainda hoje uma das melhores do mundo”, contar-nos-á, mais tarde, o administrador Nuno Barra – acontece magia. E nem o barulho de uma fábrica a todo o vapor nos faz esquecer a serenidade e beleza do lugar em que se insere, e que há tantos anos lhe deu nome: o lugar da Vista Alegre. “Foi assim mesmo, o lugar é que deu nome à marca e não o contrário”, conta-nos António Machado de Matos, o director do recém-inaugurado hotel Montebelo Vista Alegre Ílhavo, que tem nove dos seus 80 quartos na recém-recuperada casa do fundador da Vista Alegre, José Pinto Basto.
A confirmar as suas palavras, a inscrição na pedra da fonte que hoje é parte do pátio da unidade hoteleira, e que durante décadas matou a sede aos trabalhadores da fábrica e habitantes do lugar da Vista Alegre. “Sim, a água ainda é boa para beber”, confirma Machado de Matos com um sorriso. Encaramos de novo a fábrica e atravessamos a porta da esquerda, por cima da qual permanece a inscrição, em azulejo: “Fundação – 1824”.
O branco é rei e senhor nas pilhas de peças que esperam ser decoradas.
Sentimo-nos a fazer como que uma viagem no tempo, e nem a mais recente tecnologia nos faz esquecer os milhares de pratos, canecas e porcelanas várias que ao longo de anos já ali passaram, por tantas mãos que dispensavam máquinas.
O branco é rei e senhor nas pilhas de peças que esperam ser decoradas. Por isso mesmo os salpicos de cor vão ganhando destaque à medida que surgem das mãos experiente que decalcam, sem pressas e sem paragens, os motivos daquela linha em particular. “Cada carrinho destes, por exemplo, deve ficar pronto em 20 minutos”, explica-nos Teodorico Pais, director industrial, esclarecendo que o tempo de cada processo é estudado, medido e implementado de forma a garantir o mais elevado nível de eficiência da fábrica.
Salva do abismo
Enquanto passamos pelos diversos departamentos da fábrica Vista Alegre Atlantis (VAA), vemos funcionários de sorriso fácil e movimentos ágeis. A empresa respira saúde, agora, mas ainda está fresco na memória de todos como esteve à beira da falência, há cerca de sete anos, antes de ser adquirida pelo grupo Visabeira. “Na altura, a empresa tinha 18 milhões de euros de prejuízo. Não sei, talvez aguentasse de portas abertas mais um ano. Não consigo sequer dizer”, revela-nos Nuno.
No ano passado, a VAA fechou as contas com uma facturação de 71,8 milhões de euros e prejuízos de 814 mil euros (menos 57% que os reportados no ano anterior). “Passaram seis anos e ainda nem chegámos ao break-even”, sublinha o administrador, confiante, no entanto, de que dentro de “dois ou três anos” a empresa possa estar já a dar lucros, assim o contexto económico nacional e internacional o permitam.
Para revigorar a marca, em 2009, a Visabeira assumiu a totalidade dos créditos que vários bancos detinham sobre o grupo Vista Alegre Atlantis e, com isso, assumiu o total controlo da empresa.
Nuno revela que no decorrer deste processo de revitalização da empresa não houve demissões, “apenas algumas reestruturações internas”. O que se fez foi alterar drasticamente a estratégia de marketing, que passou por apostar num reforço do posicionamento da marca no segmento de prestígio e luxo.“O essencial era recuperar o tempo perdido e colocar a marca nos tempos de hoje”, diz.
“Na altura, a empresa tinha 18 milhões de euros de prejuízo. Não sei, talvez aguentasse de portas abertas mais um ano”, revela-nos Nuno Barra.
Para isso, modernizou-se toda a rede de distribuição, rejuvenesceram-se as lojas, renegociaram-se contratos e criaram-se as lojas on-line em Portugal, Espanha e EUA. “Em termos de produção não havia muito a fazer. A fábrica sempre foi uma das melhores do mundo, e a produção corria bem. O que foi preciso foi chamar mais procura para dar resposta a tudo o que era possível fazer em termos produtivos”, remata.
Foi um processo de “refrescar o que de melhor havia na marca”, recorda o responsável, salientando as parcerias com pintores ou estilistas, como Christian Lacroix, Oscar de la Renta, Manuel Cargaleiro ou Joana Vasconcelos. Na verdade, desde os anos de 1920 que a VAA aposta em colaborações com artistas, mas estas foram-se perdendo ao longo do tempo. “No fundo, foi só preciso recordar por que a VAA sempre foi uma marca à frente do seu tempo”.
Claro que para isto era preciso dinheiro e estratégia, e foi isso que a Visabeira trouxe à empresa: desde 2009 já investiu na VAA 53 milhões de euros. As colecções desenvolvidas com designers internacionais permitem ainda à VAA outro ponto relevante: “colocam a marca no eixo Paris-Nova Iorque-Milão. E ao invés de acompanhar tendências, a própria marca consegue criá-las”, salienta Nuno. Para impulsionar estas parcerias, a VAA aposta ainda no ID Pool, um programa de residências artísticas que permite a artistas de todo o mundo passar três meses na fábrica a desenvolver projectos. Se, no final, o júri da empresa gostar do que viu, há mesmo a hipótese de as peças projectadas serem produzidas com o selo VAA.
O peso da história
“O equilíbrio entre as novas gerações, o passado e o know-how da VAA é o que faz a diferença”, diz-nos Nuno quando comentamos a presença de Manuel Jorge, que há 42 anos faz parte da equipa de escultores da VAA. “Os meus pais, os meus tios e o meu irmão também trabalharam cá”, revela à FORBES um dos mais antigos funcionários da empresa, sem nunca parar de moldar um trabalhoso pássaro. “Faço uns quatro por dia”, confessa-nos, sorriso orgulhoso no olhar e mãos destras a fazer aparecer penas e bicos e olhos.
Enquanto olhamos para uma linha de montagem de saladeiras nada comuns, Teodorico Pais apresenta-nos Rui Grave. Depois de falharmos miseravelmente o desafio que nos deram – tentar centrar uma peça de cerâmica na roda de oleiro de Rui –, é entre gargalhadas que ele nos confessa que demorou “dois dias, de 16 horas cada, até conseguir fazer isso bem”. Hoje, 39 anos depois de ter entrado para a VAA, demora cinco segundos a fazê-lo. “O meu pai e a minha mãe também trabalharam aqui”, revela sem que os movimentos parem.
Casos como os de Manuel e de Rui são a regra e não a excepção de uma casa que hoje emprega cerca de 1300 pessoas. Destas, à volta de 600 estão na fábrica de Ílhavo, e pode dizer-se com alguma segurança que grande parte delas está apenas a seguir as pisadas da família. “Há muita gente que tem uma ligação à faiança e à porcelana”, diz-nos Nuno, relativizando a dificuldade de prender as novas gerações a este tipo de trabalhos. “Temos boas escolas de design e de engenharia”, e o resto da formação é feita já na fábrica, com a introdução dos novos elementos nas equipas existes. Antes a VAA tinha uma escola de formação, mas actualmente a formação é feita on job. “Conseguimos perceber quando vamos ficar sem uma pessoa que vai reformar-se, por exemplo. Uns dois, três anos antes começamos a introduzir novos elementos na equipa para a substituição”, esclarece.
Este ano, o foco da Vista Alegre Atlantis continuará a ser a internacionalização “estabilizando a operação online, sobretudo no resto do mundo”.
Da fábrica de Ílhavo saem, em média, 45 mil peças por dia. Em stock estão, por norma, cerca de 2 milhões de peças em branco, que vão sendo decalcadas, pintadas, cozidas e embaladas à medida das encomendas. Há seis fornos a funcionar em permanência, e outros três que são postos a funcionar em caso de necessidade. “E temos um forno novo que nos aumentou a eficiência de uma forma incrível”, explica-nos Teodorico Pais.
O velhinho forno de tijolo, que precisava de funcionar 24 horas por dia, teve finalmente direito a entrar na reforma. Ao lado, tem agora um moderno e sofisticado modelo que representou um investimento de 2,5 milhões de euros – “mas é para os próximos 50 anos, pelo menos”, acrescenta o director industrial – e que permite cozer entre 18 mil a 20 mil peças por dia com um gasto energético muito menor.
Nuno atira um sorriso aberto quando lhe perguntamos se já alguma vez pensaram em tirar a produção de Portugal: “e depois dizíamos que tínhamos uma marca portuguesa, com 200 anos, mas que agora estava no Cambodja?”, graceja. “É certo que diminuiriam alguns custos, mas perderíamos o selo da qualidade e da tradição”, conclui lembrando que são todas estas particularidades que fazem da VAA uma marca sem concorrentes em Portugal. Contudo, sublinha que “se faz muito boa porcelana no país.” Este ano, o foco da VAA continuará a ser a internacionalização “estabilizando a operação online, sobretudo no resto do mundo”.
A marca já tem presença física em Nova Iorque, “com um showroom grande”, bem como em Barcelona e Madrid – desde o final do ano passado – e em São Paulo, na Namíbia, em Angola e em Moçambique. Lojas necessárias para tornar a confiança na marca mais “palpável” ao público, e para destruir as barreiras que o online nem sempre consegue derrubar. Ainda não há valores do investimento para 2016, mas para Nuno há algo que, ao fim de sete anos, parece óbvio reforçar: a Visabeira está na VAA para ficar e para levar a marca às mesas e casas de todo o mundo.