E uma livraria, não é um monumento. Mas tornou-se uma experiência turística obrigatória para quem visita o Porto. Porquê? Porque, sem exageros, consegue transportar quem lá entra para uma época em que a bandeira nacional era azul e branca, houve um regicídio, discutiam-se ideias liberais, havia uma crise económica e social, instabilidade política, e tudo convergiu para a realização das primeiras eleições livres portuguesas.
Sem o contexto de finais de século XIX e início do século XX, ou seja, vista de fora, a Livraria Lello chama desde logo a atenção de quem por ali passa, na Rua das Carmelitas (de frente para a livraria, o visitante tem a Torre dos Clérigos nas costas) pela fachada de estilo neogótico, com as duas figuras (uma simboliza a Arte e outra a Ciência) da autoria de José Bielman.
Vistoso é igualmente o vitral com oito metros de comprimento e 3,5 metros de largura, com a divisa “Decus in labore” (Dignidade no trabalho), que está a ser restaurado pela primeira vez e 110 anos depois. Há ainda um arco abatido de grandes dimensões, com entrada central e duas montras laterais.
Hoje, não é possível ver a fachada nem o vitral porque estão em curso obras de conservação e de restauro, e foram temporariamente tapados com um mural artístico de Mr. Dheo e Pariz One. Os administradores da Livraria Lello, José Manuel Lello (bisneto do fundador) e o empresário Pedro Pinto, garantem que as obras estarão prontas ainda este mês e “vão ser uma grande surpresa. Porque serão não o que estávamos habituados a ver, mas a cópia fiel do que já foram em 1906”.
Memorial de histórias
No interior, os olhos fixam-se imediatamente na escadaria carmim, que já era famosa, mas ficou ainda mais quando serviu de inspiração a J. K. Rowling para as escadas da escola de magia e feitiçaria de Hogwarts. A escritora inglesa viveu no Porto no início da década de 1990, tendo leccionado inglês. Foi precisamente na Invicta que começou a escrever o primeiro livro da saga Harry Potter, “A Pedra Filosofal”.
O aspecto etéreo da escadaria tem uma explicação. É conseguido graças ao betão armado, que lhe permite ter apenas três pontos de apoio (um em baixo e um de cada lado em cima). O engenheiro responsável (por todo o edifício) foi Francisco Xavier Esteves, o introdutor do betão armado nas construções civis em Portugal e primeiro presidente da Câmara do Porto do regime republicano.
E é claro que a luz natural transmitida através do vitral lhe dá requinte e glamour (o vermelho dos degraus também ajuda). No interior deste templo das letras e das artes, de longos pilares, as prateleiras estão cheias de livros: mais de 100 mil títulos em várias línguas. E Romão Júnior, ao esculpir os bustos dos escritores Antero de Quental, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Teófilo Braga, Tomás Ribeiro e Guerra Junqueiro, deu-lhe imortalidade.
A Lello foi inaugurada a 13 de Janeiro de 1906, causando frisson na agenda cultural da época. Guerra Junqueiro estreou desta forma o Livro de Ouro da Lello: “Aos meus amigos e correligionários irmãos Lello, que fizeram esta grande obra pelo progresso e pela democracia”.
Quem fotografou a inauguração foi outro republicano, Aurélio Paz dos Reis, pioneiro do cinema em Portugal. Entre os ilustres convidados estava também Afonso Costa, um dos grandes responsáveis pela implantação da República. É certo que as actuais instalações da Lello datam de 1906, mas as suas origens remontam a 1881, quando José Pinto de Sousa Lello abriu um estabelecimento dedicado ao comércio e edição de livros, na Rua do Almada.
E quando, em 1885, morre Ernest Chardon – foi durante muitos anos o único editor de Camilo Castelo Branco, tendo publicado também muitas obras de Eça de Queiroz e Guerra Junqueiro, entre outros -, a sua livraria (Livraria Internacional de Ernesto Chardon) passa para as mãos do editor Mathieu Lugan que, nove anos depois, vende-a a José Pinto de Sousa Lello. Este, em sociedade com o seu irmão António Lello, engrandece a livraria-editora adquirindo os fundos bibliográficos de outras importantes casas livreiras do Porto.
Transformar turistas em leitores
A Livraria Lello & Irmão soube adaptar-se ao tempo e em 1995 o espaço foi restaurado. José Manuel Lello lembra que o serviço foi actualizado e informatizado, tendo também sido criado um espaço de galeria de arte e de tertúlia que se tem afirmado como um importante pólo cultural da cidade do Porto.
Nessa remodelação, no piso de cima, o antigo balcão da caixa foi transformado em bar. O espaço convida a um cálice de vinho do Porto enquanto se folheia um livro ou se descobre na parede uma carta do pai de Eça de Queiroz aos editores para recomendar o trabalho do filho, argumentando que o rapaz tinha queda para as letras. Classificada como monumento de interesse público em 2013, a Lello possui mais de 100 mil títulos em várias línguas e factura 10 mil euros por dia. No top de vendas estão Fernando Pessoa, José Saramago e J.K. Rowling.
Há mais de um ano que a livraria abre aos domingos. Dos milhares de turistas, destacam-se os espanhóis, franceses, brasileiros, coreanos, japoneses, chineses, italianos, russos e muitos portugueses. A partir de 23 Julho de 2015 que a entrada na livraria passou a ter um custo de 3 euros, valor dedutível na compra de livros. Esta foi a forma encontrada para conter o número elevado de turistas que lá vão (mais de mil por dia). “Actualmente conseguimos controlar o número de pessoas e conciliar uma visita relativamente confortável. O que queremos é transformar visitantes em leitores”, adianta José Manuel Lello. E o que é que os turistas querem? “Procuram livros sobre Portugal, o Douro, Vinho do Porto, azulejos, guias turísticos, literatura portuguesa traduzida na sua língua, e também recordações da livraria”, responde. A verdade é que todos gostam dela, mesmo com um problema de espaço, que os administradores querem solucionar um dia.