O dia 23 de Junho de 2016 ficará na história da Europa. Numa decisão inesperada, pelo menos para os europeus continentais, os britânicos decidiram pôr fim à “comunhão económica de facto” que os ligou durante 43 anos ao projecto europeu iniciado em 1952 com a Comunidade Económica do Carvão e do Aço, arrastando a economia europeia para um cenário de incerteza e provocando perdas severas nos mercados de capitais.
Nos dois dias seguintes ao referendo, em que 51,9% dos britânicos votaram a favor do Brexit, as Bolsas mundiais perderam cerca de 4 biliões de euros de capitalização e a libra esterlina atingiu o valor mais baixo dos últimos 31 anos face ao dólar e perdeu 6% para o euro. Pânico? Ferreira do Amaral, economista crítico da adesão de Portugal ao euro, pensa que sim. “Acho que o impacto do Brexit está a ser exagerado”, diz, sublinhando que não antevê a criação de restrições ao comércio entre o Reino Unido e a União Europeia (UE). “O que poderá acontecer? O Reino Unido sair da Política Agrícola Comum. Isso tem um efeito nulo, pois a agricultura não representa nada na economia britânica”, diz. Na visão do professor de Economia do Instituto Superior de Economia e Gestão, “seria mais grave se o Reino Unido pertencesse ao euro”. Para Portugal, o lado mais relevante do Brexit é a questão dos emigrantes portugueses no país, “que as autoridades nacionais devem começar já a precaver”, defende.
PARCEIRO DE PESO
Se nas exportações a desvalorização da libra tem um impacto directo na competitividade dos bens e serviços portugueses, no campo do investimento directo estrangeiro (IDE) é mais difícil antecipar os riscos. Ferreira do Amaral não antevê grandes mudanças. “Se o investimento for bom, os ingleses virão para cá”, diz. No entanto, tendo em conta o peso do Reino Unido no IDE em Portugal, qualquer variação negativa acrescentará dificuldades à economia nacional, que precisa de investimento para fomentar o crescimento económico.
EXPORTAÇÕES SOB PRESSÃO
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o Fundo Monetário Internacional e outros organismos e especialistas internacionais dizem em coro que a saída do Reino Unido da UE terá implicações económicas em todos os países europeus. Segundo um estudo do Global Counsel, uma organização que se dedica ao estudo do impacto das políticas públicas na economia, Portugal será o quarto país da UE mais afectado com o Brexit, e não é difícil perceber porquê. O Reino Unido é o quarto maior cliente e investidor estrangeiro do país, um peso que perante o abrandamento esperado da economia britânica poderá condicionar a evolução da economia nacional.
Para Adrian Bridge, presidente executivo da Fladgate Partnership, proprietária das casas de Vinho do Porto como a Taylor’s e a Fonseca, cujas vendas para o Reino Unido representam 30% da facturação anual da companhia, o Brexit não é uma catástrofe. “Acreditamos que os britânicos vão continuar a beber Vinho do Porto”, diz. Para o gestor, a queda da libra esterlina vai, sobretudo, afectar o lucro da empresa. “Teremos que aumentar gradualmente os preços nos próximos anos para pagar as perdas”, explica. No entanto, fora do universo particular do Vinho do Porto, espera-se um maior impacto. “Sim, vamos perder competitividade face a outras bebidas”, refere Martim Guedes, administrador da Aveleda, proprietária de uma vasta gama de vinhos verdes, entre os quais o “Casal Garcia”. Segundo o gestor, “há muita pressão sobre o preço no mercado britânico, o que nunca nos permitiu atingir volumes significativos e, pelos vistos, não será agora que vamos conseguir”, explica.
Em 2015, Portugal exportou para o Reino Unido cerca de 3,4 mil milhões de euros e importou 1,9 milhões, o que resulta num saldo positivo próximo de 1,5 mil milhões. Até Março de 2016, o superávit comercial ascendia já a 408 milhões de euros. São números que revelam a importância de um mercado em que Portugal perdeu competitividade logo no dia seguinte ao referendo e cuja economia deverá sentir já este ano o impacto do “divórcio”. “A economia britânica vai travar a fundo”, diz Stephanie Flanders, estratega do banco JP Morgan. Segundo as estimativas mais optimistas dos economistas do banco de investimento norte-americano, a economia britânica deverá crescer este ano 0,6%, menos um ponto percentual que o previsto num cenário de manutenção na UE, e a taxa de inflação deverá aumentar para valores entre 3% e 4%, devido à desvalorização da libra esterlina. Perante este cenário económico e cambial, que os especialistas dizem que está ainda longe de estabilizar, as mais de 2600 empresas portuguesas que vendem para o Reino Unido têm razões para estar apreensivas. Entre elas está a produtora de brinquedos científicos Science4You, que tem no Reino Unido um dos seus principais mercados. “A saída do Reino Unido pode condicionar o nosso negócio. Mas vamos aguardar o desenrolar da situação e analisar com maior detalhe a influência da decisão nos resultados”, explica Miguel Pina Martins. Para o fundador da empresa, “a perda de competitividade vai obrigar-nos a vender os brinquedos a um preço não desejado, o que irá condicionar o nosso crescimento”.
TURISMO ESTREMECE
Se no cômputo geral das exportações o Reino Unido é um cliente relevante do país, no sector do turismo, que em 2015 representou cerca de 15% do total das exportações de bens e serviços (11,4 mil milhões de euros), os britânicos são mesmo os maiores clientes: representam 17,6% das receitas turísticas, o que equivale a 2 mil milhões de euros, cerca de 1,1% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Francisco Calheiros, presidente da Confederação do Turismo Português, sublinha que “a instabilidade financeira e a desvalorização da libra poderão levar a um abrandamento das viagens dos ingleses”.
Com as exportações de bens em queda, devido ao abrandamento da economia mundial e, em particular, à quebra da economia de Angola, país responsável pelo incremento das exportações nacionais nos últimos anos, o turismo e o mercado britânico têm sido primordiais para as contas da balança comercial portuguesa. Em 2015, os britânicos foram responsáveis por 24% do total de dormidas registadas no ano, mais 10% que os segundos maiores clientes dos hotéis nacionais, os alemães. Os últimos dados disponíveis, referentes a Abril, revelam ainda que os ingleses foram responsáveis por 708 mil das cerca de 3 milhões de dormidas de não residentes, um aumento de 16,6% face ao mês homólogo. Perante tais números, “eventuais oscilações de procura neste mercado terão impacto na actividade turística nacional”, conclui Francisco Calheiros, sublinhando que o Algarve e a Madeira serão os destinos que poderão sofrer um maior impacto da contracção da procura.
O JP Morgan estima que a economia britânica cresça 0,6%, menos um ponto percentual que o previsto num cenário de manutenção na União Europeia, e que a taxa de inflação aumente para valores entre 3% e 4%.
UMA OPORTUNIDADE PARA LISBOA
O Reino Unido e, em particular, Londres com a sua City, é considerado o melhor local da Europa para fundar uma empresa. Mas o Brexit pode mudar essa percepção. Uma sondagem realizada pelo Institute of Directors, uma federação de gestores britânica, junto de mais de mil dos seus membros, revela que um em cada cinco admite deslocalizar a actividade para outro país da Europa após o Brexit. Além disso, dois terços entendem que a saída é negativa para a economia britânica. Empresas como a Easyjet, Ryanair e até a nativa Vodafone já admitiram a mudança e congelaram investimentos.
Por cá, o hábito de domiciliar uma empresa em Londres é comum entre as start-ups portuguesas. Codacy, Seedrs e Uniplaces são alguns exemplos que devido à cultura do risco e à abundância de fundos de venture capital decidiram instalar-se na capital britânica, mas com o Brexit a City perde algum brilho. “Grande parte das start-ups europeias têm escritórios técnicos ou comerciais em Londres, mas com a saída da UE, isto deixará de acontecer”, explica Nuno Sebastião, fundador da Feedzai, empresa que também tem uma delegação na capital britânica e que também está a equacionar mudar-se para Paris ou Frankfurt. No entanto, apesar do revés que representou na sua estratégia, o gestor vê no Brexit “uma oportunidade para o ecossistema nacional acelerar a implantação de start-up europeias e norte-americanas em Portugal que anteriormente iriam para Londres”, explica.
SINAIS VERMELHOS
A predilecção dos britânicos pela região Sul de Portugal e pela beleza da “pérola do Atlântico” torna o Algarve e o arquipélago da Madeira nas regiões mais sensíveis às consequências do Brexit. José Theotónio, presidente executivo do grupo Pestana, revela à FORBES que “há uma preocupação com a saída do Reino Unido da UE, pois certamente criará perturbações e alguma instabilidade”. O responsável está confiante que será encontrada uma solução proveitosa para ambas as partes, mas não tem dúvidas de que “a desvalorização da libra pode prejudicar o fluxo de turistas que chegam a Portugal”.
No Algarve, 45% dos aviões que aterram no aeroporto de Faro são originários de Inglaterra. Se a estes se somar os originários da Escócia e da Irlanda do Norte, a percentagem passa para 55%. “Sem dúvida alguma que o Brexit terá consequências negativas para o turismo do Algarve”, afirma Carlos Gonçalves Luis, sublinhando que o mercado britânico foi responsável por 40,4% das dormidas na região. Para o presidente da Associação de Turismo do Algarve, a desvalorização da libra irá originar uma redução da procura devido à consequente diminuição do poder de compra dos turistas ingleses. No entanto, como a perda será proporcional nos destinos concorrentes, o presidente da ATA acredita que os britânicos não deixarão de viajar para o Algarve. “A experiência diz-nos que até mesmo nos períodos de maior incerteza, como foi exemplo a crise bancária de 2008, os ingleses não prescindiram das suas férias”, explica, notando que, ainda assim, a situação ditará um claro desafio aos agentes do sector.
NO CENTRO DO FURACÃO
Para os trabalhadores portugueses, o mercado de emprego britânico tem sido uma fuga à elevada taxa de desemprego nacional. Segundo os números da Segurança Social do país, há cerca de 234 mil portugueses a viver e a trabalhar naquele país, embora as estimativas das autoridades nacionais apontem para mais de meio milhão de portugueses a residir no Reino Unido. Mas, números à parte, todos têm razões para se sentir apreensivos com o Brexit. “A inquietação, a incerteza e, provavelmente, alguma desmotivação irão apoderar-se mesmo dos profissionais que estão mais informados e sobre as potenciais consequências a curto e a médio/longo prazo”, explica Afonso Carvalho, presidente da Associação Nacional de Empresas de Recursos Humanos. Apesar de decidida, a desvinculação da UE deverá demorar cerca de dois anos a concretizar-se. “Até lá continuará em vigor a directiva que legitima a livre circulação de trabalhadores”, explica.
No curto prazo, as duas maiores consequências para os portugueses radicados no Reino Unido são a perda de valor da libra face ao euro e o abrandamento económico esperado, que poderá gerar uma diminuição do emprego disponível. Contudo, Amândio Fonseca, administrador executivo da Egor, não tem dúvidas de que “haverá condicionamentos resultantes de eventuais consequências económicas do Brexit na economia britânica e das dificuldades de obtenção de autorizações de residência e trabalho”. Talvez por isso, o secretário de Estado das Comunidades tenha aconselhado os portugueses que trabalham há mais de cinco anos naquele país a solicitar o estatuto de residente permanente. “É uma forma de acautelar os seus direitos”, disse José Luis Carneiro, um dia antes do referendo aos jornalistas.
REINO DIVIDIDO
No dia seguinte ao referendo, Sadiq Khan sublinhou que, apesar do resultado do escrutínio, todos os europeus são bem-vindos à capital britânica. “Valorizamos o enorme contributo que dão à nossa cidade e isso não vai mudar com o resultado deste referendo”, escreveu o Mayor de Londres num comunicado. Na capital, mais de 75% dos eleitores votou na permanência, mas no resto do reino, com excepção da Escócia e da Irlanda do Norte, argumentos como a falta de legitimidade democrática das instituições europeias e o excesso de imigrantes no país convenceram os eleitores a votar na saída. Para Amândio Fonseca, este último argumento faz antever a alteração de algumas regras. “A imigração será fortemente restringida e a política de vistos, quer de trabalho quer de residência, será revista, tornando a emigração para um país que já tem 1,22 milhões de emigrantes mais difícil”, afirma.
Ainda assim, o Reino Unido tem uma acentuada e histórica necessidade de importar recursos humanos para alguns dos seus sectores mais críticos, nomeadamente para a área da saúde, educação, hotelaria, indústria e construção. “Os próximos tempos poderão ser de mudança, no que diz respeito à deslocalização destes recursos para outros países europeus onde o conhecimento da língua e as certificações necessárias serão um obstáculo, ao contrário do que acontecia naquele país”, explica Afonso Carvalho, citando o exemplo dos licenciados em enfermagem. No cômputo geral, o especialista acredita que “não só será mais difícil como menos atractivo ir trabalhar para o Reino Unido, após a saída”, mas sublinha que o país tem pela frente muitos desafios e um deles será conseguir construir uma dinâmica idêntica à actual no que diz respeito à circulação de mão-de-obra. “Não me parece que o Reino Unido consiga manter uma economia como a que tem sem uma importação considerável de recursos, pelo que os portugueses, certamente, que continuarão a fazer parte dessa equação”, defende.