Quanto custou a última paralisação do governo dos EUA? Após 35 dias de impasse (entre 22 de Dezembro e 25 de Janeiro), ficaram por pagar cerca de 5,6 milhões de euros em salários a 747 573 funcionários federais.
Cada segundo que passava representava 1866 euros adicionais. Alguns funcionários foram dispensados, mas muitos mais trabalharam sem ser remunerados. No Departamento de Segurança Interna, por exemplo, cerca de 245 405 trabalhadores não receberam e 32 706 ficaram em casa.
No Tesouro, 36 309 funcionários foram despedidos e 82 336 não auferiram salário nesse. Na Agência de Protecção Ambiental, 52% do pessoal esteve a trabalhar sem ser remunerado.
Ter uma ideia da magnitude desta paralisação, também conhecida pela expressão inglesa shutdown, assim como dos detalhes da mesma, foi uma tarefa titânica.
A Enigma, uma fintech desconhecida sediada em Nova Iorque, lançou mãos à obra e contabilizou os custos em tempo real no site que criou para o efeito, o “Government Shutdown 2018-2019”.
Para isso, a empresa pesquisou e analisou os planos de contingência do Gabinete de Gestão e do Orçamento para 109 departamentos federais e consultou o FederalPay.org para obter os salários médios e o quadro de pessoal de 46 agências.
Ao todo, a Enigma passou a pente fino 2 mil páginas e 2 milhões de folhas de cálculo de entidades federais para cartografar os dados necessários ao desafio a que se propôs. Da ideia ao lançamento do site bastaram 36 horas e software específico.
Os dados do shutdown estão disponíveis gratuitamente, mas a rapidez com que a Enigma interpretou várias fontes de dados, públicas e privadas, sem ligação entre si, e criou uma visão personalizável da economia global atraiu a atenção de algumas das maiores empresas do mundo, como a BlackRock, PayPal e Celgene.
São muitos os clientes dispostos a pagar mais de um milhão de euros por ano para ter acesso aos seus insights.
A Enigma é uma criação de Hicham Oudghiri e Marc DaCosta, amigos inseparáveis desde os tempos da faculdade, há 16 anos, quando estudavam filosofia na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.
Entretanto, criaram uma start-up que organiza informação proveniente de milhares de fontes em todo o mundo numa única interface interligada.
“As pessoas sabem como funciona a internet, como registar utilizadores e usar cookies para sugerir produtos na Amazon. Esse problema está resolvido. No nosso caso, estamos a construir um modelo do mundo real”, explica Oudghiri, 34 anos, na sala de reuniões Humboldt, assim chamada em homenagem ao filósofo prussiano da era do Iluminismo. O co-fundador da Enigma, DaCosta, 34 anos, acrescenta: “Não estamos a falar apenas num microprocessador mais rápido ou em melhores estatísticas. A Enigma é um diagrama de conhecimento do que está a acontecer na economia”.
A incursão de Oudghiri e DaCosta no campo da mineração de dados teve início depois da crise financeira de 2008. Ambos queriam explicar o mundo à luz das disrupções globais então em curso, pelo que decidiram organizar conjuntos de dados e disponibilizá-los publicamente.
Começaram pelos registos de voo da Administração Federal de Aviação dos EUA e descobriram um manancial de informações valiosas escondidas, mas ao alcance de todos.
Ou seja, apenas estavam esquecidas em registos do governo, publicações académicas, arquivos de empresas e manifestos de carga. Se pudessem coligir, organizar e analisar essa informação, possivelmente conseguiriam produzir um retrato macroeconómico quase em tempo real.
Activo precioso
Oudghiri e DaCosta fundaram a Enigma em 2011 e começaram a amalgamar dados públicos, maioritariamente de fontes governamentais, bem como registos de importação das alfândegas norte-americanas (U.S. Customs and Border Protection) e de licenças de construção, reunindo-os numa única fonte.
Os dois amigos também se tornaram especialistas a revelar informações complexas e difíceis de descobrir. Por exemplo, a Enigma consegue usar o AMS – Automated Manifest System, i.e. o sistema de controlo e autorização prévia de mercadorias, invocando a Lei da Liberdade de Informação, para rastrear todos os contentores que chegam aos EUA, incluindo o importador e o porto de escala.
A Enigma consegue ainda identificar a causa e a localização de cada incêndio nos EUA a partir do National Fire Incident Reporting System (NFIRS) e, na área da energia, recorre a dados de poços de petróleo da Comissão Rodoviária do Texas, fundada em 1891 para fixar tarifas.
2014 foi um ano decisivo para a Enigma: além de captar a atenção de Bill Gates com um projecto envolvendo as alterações climatéricas nos EUA entre 1964 e 2013, e de reunir cerca de 4 milhões de euros junto de empresas como a Comcast, American Express e New York Times, também entrou para o universo da Fintech Innovation Lab (FIL), a aceleradora criada pela Accenture e o Partnership Fund para a cidade de Nova Iorque.
Uma vez na FIL, e integrada com bancos e gigantes de Wall Street, Oudghiri e DaCosta descobriram que os seus dados são extremamente úteis na área dos serviços financeiros, na medida em que permitem correlacionar as informações obtidas pela Enigma com os dados dos clientes nos sistemas dos bancos, para detectar situações de fraude mais rapidamente, por exemplo. “Saímos com um plano de batalha. Depois, foi tudo muito rápido. Criaram um pacote de software com diagramas de conhecimento coloridos e colocaram ferramentas especializadas numa interface de compliance a que chamaram Dossier”, explica DaCosta sobre a aceleradora.
A cultura académica nerd da Enigma não a impediu de atrair clientes empresariais e financiamento de Silicon Valley e de Wall Street. Gigantes como BlackRock, PayPal, American Express, MetLife, BB&T, Celgene, Merck e EMD Millipore fazem parte do rol.
Além disso, a empresa angariou perto de 115 milhões de euros nos últimos sete anos junto de investidores de risco como a NEA, Crosslink Capital e Glynn Capital, e de hedge funds como Two Sigma Ventures e Third Point Ventures.
A FORBES avalia a Enigma em cerca de 660 milhões de euros e estima que as receitas anuais rondem os 27 milhões de euros, tendo a sua base de clientes duplicado em 2018.
Concorrência feroz
Greg Baxter, responsável pelo departamento digital da MetLife, decidiu usar os dados que a Enigma obtém a partir de sistemas de saúde pública e universidades e ligá-los aos sistemas da empresa para identificar focos de doença ou casos de risco, bem como para melhorar a subscrição de seguros. Mas não só.
Baxter também está a usar os dados da Enigma no braço de investimento da MetLife – avaliado em 520 mil milhões de euros – para quantificar de que forma a qualidade de restaurantes, parques e espaços para eventos comunitários impacta os preços dos imóveis. “Eles descobrem as fontes, organizam os dados e, depois, arranjam maneira de relacionar os dados através de machine learning. Quando combinamos esses dados externos com os nossos dados internos, obtemos tendências de previsão e insight absolutamente extraordinários”, explica Baxter.
O investidor John Fogelsong, da Glynn Capital, acredita que a Enigma pode vir a ser uma ameaça para os grandes fornecedores de sistemas fechados como a Oracle, IBM, SAS e SAP: “Cada novo conjunto de dados que a Enigma ingere aumenta a capacidade da empresa de melhorar os processos de negócio de um cliente”, realça.
A recente experiência da BlackRock, cujos activos estão avaliados em 5,3 biliões de euros, é um exemplo disso mesmo.
Quando Frank Cooper, recém-nomeado director de marketing, foi incumbido de agitar as águas no que toca a angariar clientes, a Enigma fez uma descoberta surpreendente: ao contrário da abordagem tradicional, baseada na segmentação regional e demográfica, não existe uma correlação estreita entre a localização de um cliente e o planeamento da sua reforma, mas a vertente política tem um peso considerável.
“Alguém politicamente activo, seja ou não proprietário de casa, tenderá a planear a sua reforma. Foi uma conclusão chocante para nós”, diz Cooper.