Fradique estava na praia a jogar à bola. António estava na roça com os avós. O pai ouve pela telefonia que a 50 quilómetros dali, na capital, um festival entre cabo-verdianos e são-tomenses está prestes a acontecer.
Pede ao sobrinho para chamar o Fradique, e este corre 2 quilómetros sem fôlego para apanhar o irmão mais novo. Chegam e perguntam: “Papá, não fomos convidados, como vamos fazer?” Ele responde: “Preparem-se, vamos arrancar para a cidade, eu arranjo uma forma de vos co[1]locar no palco”. Falou aqui e acolá, foi pedindo a este e a outro, e lá subiram ao palco, cantaram duas canções próprias e uma da Cesária Évora. Sôdade, claro. A dupla não foi indiferente aos ouvidos de Djô da Silva, antigo manager da diva dos pés descalços, que lhes deu um cartão e o sonho de assinarem o primeiro contrato.
António e Fradique são os Calema. Se há história de superação na lusofonia, esta é uma delas, a de um grupo que atingiu 100 milhões de visualizações no YouTube, sempre a correr atrás de um sonho. Trazem a música na alma e no corpo, o sorriso largo, a empatia de dois irmãos com uma diferença de cinco anos, os braços abertos entre a humildade e o orgulho de chegarem aonde estão. Mas não esquecem as raízes. Nem a sua história.
Que é a história de centenas de jovens que continuam à procura do eldorado além-fronteiras. Não porque querem. Mas porque o país lhes fecha os horizontes. Mas foi aqui, no meio deste nada, que tudo começou para estes dois irmãos, numa família de seis, mãe enfermeira e pai a trabalhar na área da construção civil, ambos a fazerem um pouco de tudo e ambos a ouvirem e a incentivarem a música dentro de casa e fora dela, no grupo coral da igreja, domingo após domingo. Um hábito que se foi perdendo no tempo, dizem, mas continuam “crentes e agradecidos”.
Fradique, o mais velho, já tinha um grupo de rap com os primos em 2004, “coisa de miúdos”. António, mais novo, estava numa fase diferente, encontraram-se algures pela música brasileira que se ouvia por casa, focando-se o mais velho nos poemas – António ainda se lembra do caderno do irmão – e o mais novo na parte musical. Ainda hoje é assim. O ano de 2007 foi um marco, recorda António.
“Estávamos nas rádios e nas televisões com o nosso pai a pedir apoio. Não só monetário, estávamos abertos a tudo, havia pessoas que diziam que não tinham dinheiro, mas estamos aqui para vos ajudar, gostamos muito do vosso trabalho. Outros ofereciam mesmo ajuda financeira, incrível, sabiam que nós queríamos mesmo continuar a cantar”, e foi assim que tudo começou. Com duas músicas – São Tomé e Vocação – gravadas entre o sacrifício e a convicção do pai.
Recordam o momento com carinho: “O nosso pai levou-nos para gravar, mas naquele dia não tinha o dinheiro todo, teria de esperar o pagamento do ordenado. Mas ele não queria esperar e perder a gravação. Foi ter com um senhor que trocava dinheiro, o Cristóvão, que lhe emprestou a quantia na hora, sem juros, sem nada. Lá, em São Tomé, todos se conhecem e conhecem a tua família, e é assim que se vão fazendo as coisas”.
Com o balanço da gente da terra e ao ritmo das pequenas conquistas. Como no dia em que venceram o concurso nacional de rumba e ganharam 400 euros. A ouvi-los, na plateia, o primeiro-ministro da altura, que, lembra Fradique: “Veio ter connosco e falou-nos numas bolsas para estudar em Évora. Era uma boa oportunidade para rumar para Portugal. Mas a verdade é que tínhamos a bolsa, mas não tínhamos dinheiro para a passagem”. António ri. Nessa altura, a dupla fazia muito bares e hotéis. “Num desses eventos, conhecemos o Rui Mendonça, director do Banco Equador, que nos veio cumprimentar, elogiar e oferecer ajuda. Foi ele que acabou por nos financiar as passagens. Houve sempre pessoas neste processo de crescimento que nos ajudaram: o deputado são-tomense Sebastião, que nos apoiou financeiramente, e a D. Paula, uma amiga que nos emprestou uma guitarra castanha, para aprendermos a tocar”.
As memórias falam mais alto, e os irmãos atropelam- -se a contar histórias sobre um continente que funciona assim: uns ajudam os outros, e a coisa acaba por acontecer com este modus operandis. Mas como surge o nome Calema? “Nós éramos Estrelas do Sul, mas o Djô da Silva sugeriu algo mais forte. Tínhamos um contrato de três álbuns para fazer com ele e precisávamos de começar por algum lado. Ele estava entre Portugal e França. Nós em São Tomé [risos]. Nesse entretanto, a Ana Zé Charrua, da editora, manda ao Fradique uma lista de opções de nomes, entre elas Calema.
Gostámos do significado.” Para que conste, Calema significa ondulação forte do mar, própria da costa ocidental de África, proveniente do facto de a ressaca se produzir longe da costa e originar correntes que, umas após outras, chegam à costa e rebentam ruidosamente na praia. E assim ficou a partir de 2008. Mas a ansiedade era mais que muita para lançar um álbum. “Passou-se um ano e pressionámos. Mas depois tudo aconteceu muito rápido. Já em Portugal e depois do tal choque cultural, fechámo-nos num fim de semana para gravar dez músicas, tínhamos de aproveitar a presença de um produtor americano.
Não queríamos perder essa oportunidade”, explica António. Mas o álbum só muito depois aparece, primeiro a capa, depois o áudio. “Quando mandaram a primeira cópia, juntámos todos na sala da nossa tia Lúcia para ouvirmos juntos. Mas ficámos decepcionados. Ouvimos várias vezes e percebemos que poderíamos fazer melhor. O bom é que tínhamos lançado finalmente o nosso primeiro álbum, apesar de percebermos que as nossas vozes estavam cansadas, resultado da maratona da gravação.”
Não baixaram os braços. Decidiram tirar proveito do álbum, distribuíram cópias, ofereceram umas e venderam outras tantas, inclusive um à RDP África, que, na altura, recusou passar na rádio, o que os deixou um pouco em baixo.
“E ainda fomos a STP fazer campanhas durante as eleições. Precisávamos de dinheiro para comprar uma câmara”, recorda António. “Como o Fradique estava a estudar multimédia e eu audiovisual, activámos o nosso canal do YouTube com a câmara, começámos a fazer vídeos e covers.” Em 2010, com o impacto da crise, a empresa para o qual o pai trabalhava em Portugal fechou, e França surgiu no horizonte.
“O nosso pai seguiu primeiro. Ficámos seis meses com a nossa mãe e quando ele arranjou uma casinha – era mesmo uma casinha, a tal ponto, que trans[1]formámos a sala num quarto para os quatro irmãos – nós fomos ter com ele de autocarro.” António recorda que estava a meio do curso profissional de audiovisual, conversou com o professor, e ele perguntou-lhe: “Sabes falar francês?” “E eu respondi: ‘Desenrasco-me’, mas a verdade é que não tinha alternativa. Tinha mesmo de ir”. E novo choque cultural. “Totalmente, país novo, Torre Eiffel, autocarros, prédios ao ponto de esquecer uma das nossas guitarras no autocarro.
Inscrevemo-nos na Mission Locale, onde todo o emigrante aprende como se faz um CV em francês e como procurar trabalho, começámos a frequentar cursos, pagavam-nos 350 euros por mês. Por outro lado, sentimos o apoio da Igreja, os nossos pais faziam voluntariado na Cruz Vermelha em troca de comida, e o presidente da câmara conseguiu arranjar-nos uma casa maior.” Entretanto, os Calema iam apostando nos covers e partilhavam com todos os seus contactos. Entre os cursos da Mission Locale e os covers, eis que surge uma nova oportunidade. O The Voice France.
“Concorremos, mas o nosso francês ainda estava um pouco enferrujado, por isso mandámos um vídeo em inglês, passámos o primeiro casting pela Internet, o segundo já foi presencial, tínhamos optado por uma canção da Céline Dion, mas, subitamente, pediram-nos para cantar algo em português, e naquela altura o brasileiro Gustavo Lima estava no topo das rádios em São Tomé. Gostaram tanto da vibe, que enviaram um e-mail na mesma semana a dizer para participarmos no concurso com essa música. Passámos e em seguida fomos para as provas cegas”.
Nenhuma cadeira se virou, a competição era dura, mas uma nova porta se abriu. Fradique conta: “Tivemos visibilidade e audiência em mais de 12 milhões de espectadores, e após o The Voice fomos convidados para várias festas privadas em França, e isso permitiu-nos ganhar algum dinheiro”. Naquela altura, decorria também o Salão de Chocolate em Paris, onde STP tinha um expositor. A tia Paula fez todo o networking, conta António, para os colocar lá dentro. Fradique entrou primeiro e veio buscar o irmão e a guitarra cá fora mais tarde: “Foi- -nos apresentado o cônsul, que nos desafiou para cantar junto do stand, e as pessoas foram-se juntando curiosas, divertiam-se com o nosso som, e aquilo causou algum impacto. Dali fomos para o palco principal em vez de estarmos num cantinho do stand, e acabaram por nos propor actuarmos em todos os salões, sendo que eles custeavam as despesas do hotel, e nós vendíamos o nosso álbum. Ficámos surpreendidos com as filas de pessoas a irem comprar o álbum dos Calema”.
*Matéria completa na edição impressa Maio/Junho