“Music makes the people come together/Music mix the bourgeoisie and the rebel…”. Do burguês ao rebelde – que vasto mercado este.
Estes versos da letra de “Music”, de Madonna, exprimem o potencial de comunhão dos festivais. Nunca houve tantos como agora em Portugal: em 2015 realizaram-se 210 eventos do género, segundo dados da Associação Portuguesa de Festivais de Música.
No total, 1,8 milhões de pessoas foram a festivais nesse ano, o equivalente a um quinto da população. A música apela a todos: novos ou velhos, homens ou mulheres, ricos ou remediados. É um negócio com um mercado vasto e transversal.
Se já foi a um festival, percebe que o todo ultrapassa a soma das partes. Não é só uma sequência de bandas num palco a tocar canções – é muito mais do que isso.
É uma festa. “E nós estamos aqui para fazer a festa”, resume Roberta Medina, presidente da Better World, empresa que produz o Rock in Rio em Lisboa, um dos festivais que melhor exprime este conceito.
Mas o que é um festival, na verdade?
“É um espaço de liberdade, é um espaço em que não se está defendendo de ninguém, não há guerra com ninguém. Está-se ali para nos divertirmos. Estamos ali desarmados”, refere Roberta à FORBES. Desarmados a ouvir música em comunhão com outros.
“Não só em Portugal, mas no mundo, há cada vez mais eventos ao vivo. Acho que isso é uma necessidade do ser humano. Estamos muito isolados, trancados atrás dos telefones e dos computadores. Precisamos de nos relacionar, e acho que os eventos ao vivo têm essa função. A música é uma grande ferramenta para isso”, refere a líder do Rock in Rio em Lisboa.
Os festivais são uma festa. Basta entrar no recinto de um dos maiores e percebe-se que, para muitos, a música é algo secundário.
Elementos como insufláveis, piscinas e rodas gigantes convivem com stands de empresas de áreas tão díspares como a RTP, Santander Totta, EDP ou Randstad, que oferecem desde porta-chaves a capas de plástico para a chuva. Muitos festivaleiros não saem sequer de zonas como as tendas VIP e nem pensam em juntarem-se à multidão.
Hoje, os festivais de música são muito mais do que música. Mas nem sempre foi assim. Basta recuar uns anos até 1971, por ocasião da realização do primeiro festival realizado em Portugal.
No primeiro Vilar de Mouros não havia tendas VIP, marcas associadas nem grandes estruturas. Apenas a zona da bilheteira e o palco principal. Foi a primeira experiência do género no país, inspirada pelo mítico festival de Woodstock, de 1969.
Mudança de paradigma
Álvaro Covões, director-geral da Everything is New e responsável pela organização do festival NOS Alive, recorda a forma como, na década de 1990, percebeu que estava perante um filão a ser explorado.
Segundo Covões, à época, o país tinha muito poucos concertos e estavam praticamente todos concentrados na época do Verão, contrastando com outras cidades europeias, que tinham muito mais espectáculos ao vivo – e pessoas para os frequentar. “Tendo nós um estilo de vida ocidental, era normal que passássemos a fazer o mesmo. Era preciso haver players”, diz.
“Se mais de 100 mil pessoas iam ver jogos do Benfica e do Sporting num único fim-de-semana, estava na cara que os portugueses pudessem, ao longo dos anos, acorrer em massa a eventos ao vivo, tal e qual como vão ao futebol”, diz.
O número de festivais acabou por acompanhar as mudanças económicas em Portugal, aumentando lado a lado com o rendimento das famílias.
Hoje, o modelo de negócio dos festivais é muito diferente do seguido pelo Vilar de Mouros há 45 anos. Seria impossível as promotoras financiarem as máquinas de produção apenas com o rendimento da venda de bilhetes.
Entraram as marcas, juntamente com o suporte de entidades públicas. Um modelo que contrasta com os concertos em nome próprio, cujo sucesso se mede quase unicamente pelo comportamento da bilheteira.
Para se ter uma ideia do peso dos patrocinadores nos festivais de hoje, Roberta revela que o investimento base de uma edição do Rock in Rio em Lisboa ronda os 25 milhões de euros.
“Uma parte em cheque e outra em propriedades e permutas”, diz. Já Covões avança com um investimento de cerca de 7,5 milhões de euros para o NOS Alive em apenas gastos directos.
Ambos coincidem no elemento que mais pesa no orçamento: os cachets dos artistas.
Patrocínios essenciais
Se acha caro o preço dos bilhetes, pense que, sem a comparticipação das marcas, seriam muito mais caros – incomportáveis para a maioria das pessoas que hoje povoam os grandes festivais.
Na verdade, a bilheteira cobre apenas uma pequena parte do custo total de um festival. A grande fatia da factura é suportada pelos patrocinadores.
E as marcas não têm problemas em abrir os cordões à bolsa, já que tiram daí dividendos significativos.
Covões recorda como foi propor à Unicer patrocinar um festival de música que acabaria por ficar associado indelevelmente a uma bebida: o Super Bock Super Rock.
“No início, os patrocinadores viam isto com alguma resistência”, diz. “Tínhamos muita dificuldade em encontrar patrocínios.”
Estudaram dois festivais brasileiros, escolhidos pela proximidade linguística: o Hollywood Rock e o Rock in Rio, dois festivais patrocinados pela marca de tabaco Souza Cruz e pelo Turismo do Rio de Janeiro, respectivamente.
Com isso perceberam que, em países sem massa crítica como o Brasil e Portugal, era necessário ter patrocinadores de vulto “para suprimir a diferença de ter menos gente ou de um bilhete mais barato”, explica.
A saída foi propor um naming sponsorship à Unicer que “dura até hoje” – agora apenas pela mão do seu antigo sócio na Música no Coração, Luís Montez. “Viram com antecipação que a música, tal e qual como o futebol, são os melhores tipos de eventos para comunicar”, acrescenta.
Desde então, este tipo de patrocínio tem sido amplamente procurado pelas marcas. Principalmente pelas operadoras de telecomunicações, como a Portugal Telecom, NOS e Vodafone, que ostentam os nomes das suas marcas em vários festivais: MEO Sudoeste, NOS Alive, Vodafone Mexefest, por exemplo.
As marcas não se descosem relativamente a valores envolvidos na parceria com os promotores dos festivais.
Leonor Dias, directora de marca da Vodafone Portugal, explica à FORBES que a empresa tem “como política não revelar números de investimentos por cada evento”.
Contudo, dá uma pista: “podemos dizer que a música representa mais de 50% do orçamento global da Vodafone para patrocínios anuais, sendo claramente a grande âncora na nossa estratégia de activação”.
Já a Portugal Telecom, naming sponsor dos festivais Sudoeste e Marés Vivas há 12 anos e do antigo Pavilhão Atlântico no Parque das Nações, revelou, através de fonte interna, que os objectivos do patrocínio se prendem com a vontade da marca se aproximar de diferentes segmentos-alvo.
A FORBES enviou um conjunto de questões à NOS, naming sponsor de festivais como o Primavera Sound ou o Alive, mas não obteve resposta.
Além das operadoras de telecomunicações, os bancos são outra componente de peso no espólio de patrocinadores dos maiores festivais.
Francisco Viana, director de comunicação da Caixa Geral de Depósitos, refere que é uma estratégia que faz sentido, dado que de todos os investimentos que o banco público realiza, a música é o que oferece o mais elevado retorno por euro investido.
E que retorno é esse? O investimento nos fesivais permite, explica, “trabalhar percepções sobre a marca” e “comunicar, associado a este evento, antes, durante e depois do festival”.
A aposta da Caixa nos festivais foi reforçada na sequência do período de crise vivido em Portugal e que “não deixou de criar oportunidades nos negócios com os promotores”, conta.
Uma crise que, segundo Francisco, fez com que as pessoas começassem a valorizar mais os divertimentos fora de casa, trazendo-as para os festivais. “E como cereja no topo do bolo”, acrescenta, foi possível “conseguir acordos melhores do que tínhamos antes” com os promotores.
Já o Santander Totta junta-se ao Rock in Rio na edição de 2016, depois da saída da Caixa, patrocinadora da edição de 2014. “Penso que encontrámos uma forma de estarmos mais próximos de um público que reúne todos os segmentos”, considera Luís Costa, director de marketing do banco.
Negócio de margens curtas
Do lado das marcas, o investimento (que não deverá ser pequeno) compensa, tal é a onda de patrocinadores que os festivais envolvem. Mas será este um negócio rentável para os promotores?
A FORBES analisou as contas das três promotoras responsáveis pelos festivais mais emblemáticos em Portugal e as conclusões apontam para um negócio com margens reduzidas.
A Música no Coração, por exemplo, registou, em 2013 (ano mais recente com dados públicos disponíveis), vendas de 9,4 milhões de euros e gastos com fornecedores de 8,5 milhões.
Contudo, no balanço final da actividade, as contas da promotora de espectáculos revelam prejuízos de 1,4 milhões de euros que são, em grande parte, justificados por um custo de quase 1 milhão de euros decorrentes de um total de financiamento bancário superior a 10 milhões de euros no final de 2013.
A FORBES enviou algumas questões por e-mail sobre o tema deste artigo a Luís Montez, mas não obteve resposta.
A Everything is New, fundada por Covões em 2006 depois de ter deixado a Música no Coração, é a que fica melhor na fotografia.
Em 2014 fechou as contas com lucros de 2,3 milhões de euros, uma autonomia financeira de 26,5% e um nível de solvabilidade de 36%.
Parte deste feito deve-se a ter alcançado uma facturação de 22 milhões de euros e despendido 17 milhões de euros em serviços externos.
Já a Better World, do Rock in Rio, apesar de ter facturado 18 milhões de euros (praticamente o mesmo que gastou com o fornecimento e serviços) em 2014, teve prejuízos de 1,2 milhões de euros.
E isso não é o pior. As contas de há dois anos colocam a Better World numa situação de falência técnica, com capitais próprios negativos em mais de 1,6 milhões de euros e um nível de solvabilidade negativo de 48%.
Roberta confirma os números negativos da sua empresa e explica que, globalmente, “não estão no vermelho. Não tem é fartura”, diz. “Estamos a investir de um lado, a ganhar do outro, mas estamos com as contas bem equilibradas a nível global”, acrescenta.
Um dos desafios da Better World, que tem como único accionista a empresa brasileira Rock World, passa por encontrar um investidor com músculo financeiro para impulsionar o projecto a nível mundial, depois de as experiências de Madrid, em Espanha, e de Las Vegas, nos EUA, terem ficado aquém das expectativas, e de anteriores accionistas terem tombado – Eike Batista, antigo milionário brasileiro que faliu em 2014, foi o primeiro, seguido da SFX, promotora norte-americana proprietária de 40% da entidade que detém o Rock in Rio, que declarou insolvência em 2016. Roberta diz que “se houver um novo sócio, a conversa é outra.
Desenha-se um planejamento [que implica] o que é que enxergamos para a empresa nos próximos 10 anos e o que é que a gente entende que seria interessante, ideal, de investimento” nesse mesmo período.
Contudo, a líder do Rock in Rio em Lisboa contesta a ideia de que o negócio está morto. “Este ano esperamos chegar ao break-even. Esse é o objectivo. Não estamos em Portugal porque somos ‘maluquinhos’. Tem toda uma estratégia de construção de uma marca a nível global”, diz.
Alheio a tudo isto, o público vai enchendo todos os anos os festivais, quer para beber cocktails nas tendas, resguardados de tudo, quer para cantar a plenos pulmões as canções das nossas vidas no meio da multidão.
“But don’t forget the songs/That made you cry/And the songs that saved your life”, cantava Morrissey, ainda nos Smiths, em “Rubber Ring”. Ainda são as canções a principal razão que traz milhões de pessoas – e de euros – aos festivais.