À medida que se aproximava do marco de três décadas de carreira, a equipa da Forbes África Lusófona teve o privilégio exclusivo de entrar no espaço onde a magia da música acontece para o cantor angolano Don Kikas. Com o seu característico sorriso acolhedor, o músico recebeu-nos no seu estúdio, situado em Torres Vedras, a uma hora do centro de Lisboa, proporcionando uma visão íntima da sua fonte de inspiração e criatividade.
Mais do que um local de trabalho, o estúdio é um verdadeiro reduto de criatividade musical. Cada recanto e cada instrumento respiram a essência da dedicação que moldou a carreira deste ícone da música angolana. Apetrechado com instrumentos musicais como violões, guitarras, baterias e teclados, além de equipamentos de última geração para produção musical, o estúdio é um espaço onde o processo criativo flui livremente.
Testemunhando em primeira mão o seu processo criativo, ficou evidente que, para Don Kikas, a música não é apenas uma série de sons, mas, sim, uma expressão da alma, uma narrativa de experiências e um testemunho de seu legado duradouro na indústria musical.
Nasceu Emílio e fez-se Kikas
Don Kikas, nascido no Sumbe como Emílio Camilo da Costa, partilhou a origem do seu nome artístico, revelando uma história de família. Desde tenra idade, foi apelidado de Kikas pelo seu irmão mais velho, sem razão aparente. Quando iniciou a sua carreira em Portugal, sentiu a necessidade de adicionar um título mais formal ao seu nome. Assim, durante a gravação do seu primeiro álbum, adotou o termo Don, inspirado no hábito descontraído da comunidade angolana em Lisboa de se tratar mutuamente por Don. Apesar da estranheza inicial, Don Kikas tornou-se o seu nome artístico reconhecido e acarinhado.
E foi assim que o seu nome se transformou como uma das vozes mais influentes e reverenciadas da música angolana, especialmente nos estilos kizomba e semba, mas também incorpora outros estilos como zouk, R&B e pop. Com as suas músicas a abordarem temáticas como o amor, a sensualidade, a esperança, mas também a guerra, a pobreza e a justiça social.
Uma das grandes novidades no assinalar dos 30 anos de carreira será a edição de um livro autobiográfico, onde serão reveladas muitas experiências íntimas de Don Kikas, desde a sua mudança para Portugal aos 18 anos até aos desafios e triunfos ao longo da sua carreira musical. Uma história que atravessa fronteiras geográficas e culturais.
Em jeito de avanço do que poderemos encontrar na obra, o músico contou uma das experiências que mais marcaram a sua trajectória numa altura em que Angola enfrentava um período conturbado.
“Em Janeiro de 2001, durante o período da guerra civil em Angola, fomos cantar no município do Bailundo (Huambo), que tinha sido recentemente palco de grandes batalhas. Viajámos num voo militar e, quando lá chegámos, deparámo-nos com um cenário triste e devastador. Uma localidade quase completamente destruída. Montaram a aparelhagem num passeio, ao lado da estrada, e actuámos ali mesmo. Foi gratificante ver a alegria do povo, até os militares punham as armas de lado para dançar. Foi uma experiência inesquecível”, contou.
Don Kikas também reflectiu sobre a evolução da kizomba, observou as mudanças significativas na cena musical ao longo dos anos, destacando a crescente aceitação e apreciação deste género musical para além das comunidades africanas, alcançando audiências globais.
Para além da sua música, Don Kikas expressou um profundo vínculo com as raízes angolanas, recordando a infância em Angola, destacando a importância de preservar a identidade cultural africana, enfatizando o seu compromisso com temas sociais nas suas letras, usando a sua música como uma plataforma para transmitir mensagens de amor, esperança e consciência social.
Canções improvisadas, mas vindas da alma
No que diz respeito ao processo criativo, o compositor revelou que segue uma abordagem intuitiva e improvisada, muitas vezes inspirada por experiências pessoais e reflexões sobre a sua jornada e mudança da sociedade.
Assume-se um autodidacta musical, moldado pela sua própria paixão e pela inspiração que ressoa ao seu redor. Sem jamais pisar os corredores de uma escola de música, forjou a sua habilidade de forma espontânea e intuitiva, sem uma metodologia definida. A sua criação musical é um processo fluido e aleatório, onde as ideias brotam como o rio Kwanza, desviando-se e fluindo conforme a vontade do momento.
“Não tenho disciplina de escrever as coisas como deve ser, de começar com a cabeça e passar pelo tronco e depois pelos membros”, confessa. A sua abordagem à composição é tão livre quanto o vento que acaricia as palmeiras da sua terra natal. Pode até estar a conduzir pelas estradas de Portugal e, de repente, uma lembrança ou uma emoção o envolvem, e ali mesmo, ao volante, começa a cantarolar, capturando a essência do momento.
“Quando chego a casa, pego no violão e tento construir bem as ideias. A música é a minha alma a cantar”, acrescenta. O violão é seu companheiro de jornada, o instrumento que traduz os murmúrios da sua alma em acordes e melodias. É ali, diante das cordas vibrantes, que as ideias abstractas ganham forma e substância, transformando-se em canções que ecoam pela eternidade.
O futuro segundo Don Kikas
Olhando para o horizonte, o músico revela os planos para o futuro da sua carreira musical. Com entusiasmo palpável, anunciou a chegada de novos projectos, prometendo novos álbuns repletos de melodia e inspiração. Além disso, antecipou colaborações emocionantes que prometem elevar ainda mais a sua música a novos patamares.
No entanto, a sua visão vai além das notas musicais, “é uma missão de preservação cultural e partilha de tradições”. “Reafirmo o meu compromisso inabalável com a música e a cultura angolana”, diz, destacando a importância vital de partilhar e celebrar as ricas heranças do seu país com o mundo.
“Continuar a cantar e a compor as minhas músicas é o meu foco principal. Tenho em carteira o lançamento do meu novo CD e o livro da minha autobiografia. Através destes projectos, o povo da lusofonia terá a oportunidade de viajar nas minhas ideias e vivências”, revelou Don Kikas.
Além disso, mencionou discretamente o seu envolvimento numa empresa de exportação e importação. Embora tenha optado por não entrar em detalhes, revelou que este empreendimento faz parte de um negócio familiar, mostrando assim o seu compromisso com as suas raízes e com o desenvolvimento económico da sua comunidade.
Para Don Kikas, o futuro é um palco vasto e promissor, onde as notas musicais e os laços culturais se entrelaçam numa harmonia eterna. É uma jornada de criatividade, compromisso e celebração, onde cada acorde ressoa com a promessa de um amanhã ainda mais brilhante.
Mais que um trajecto, uma jornada
A sua jornada musical é uma sinfonia de sucessos e reconhecimentos, ecoando através dos corações de uma nação e além das fronteiras.
Don Kikas, cujo nome ressoa como um dos expoentes da música angolana, construiu uma obra discográfica notável, abraçando ritmos que viajam das ruas de Angola ao coração do Brasil. Premiado e aclamado internacionalmente, ele é muito mais que um artista; é um embaixador da cultura e tradição angolanas.
Saiu de Angola pela primeira vez ainda muito criança. Foi para o Brasil, onde viveu até aos 6 anos, regressando posteriormente a Angola. Aos 8 anos, compôs a sua primeira canção, marcando o início de uma carreira musical que se profissionalizaria em 1993.
Aos 18 anos chega a Portugal para dar sequência aos seus estudos. Nesta fase, o cantor juntou o útil ao agradável e começou a fazer as suas actuações.
A partir dali construiu uma notável obra discográfica, incluindo os álbuns Sexy Baby (1995), Pura Sedução (1997), que lhe valeu um disco de prata, Xeque-Mate (2000), premiado com um disco de ouro, e Raio-X (2003).
“Continuar a cantar e a compor as minhas músicas é o meu foco principal. Tenho em carteira o lançamento do meu novo CD e o livro da minha autobiografia.”
Ganhou notoriedade no cenário musical angolano e internacional, sendo premiado em várias categorias importantes. Entre os prémios que recebeu estão o de Música do Ano em Angola em 1997, pelo tema Esperança Moribunda, que se tornou um hino para muitos fãs. Além disso, em 2000, o seu álbum Xeque-Mate foi reconhecido como Disco do Ano, destacando-se pela sua qualidade e impacto na cena musical. A canção Na Lama do Amor também lhe rendeu o prémio de Kizomba do Ano no mesmo ano, solidificando ainda mais o seu lugar como um dos grandes nomes da música angolana.
A voz única e o talento de Don Kikas foram igualmente reconhecidos com o prémio de Voz do Ano em Angola em 2000, sublinhando a sua habilidade de transmitir emoção e energia através da sua música. Estes prémios não só celebram o seu sucesso, mas também reflectem o impacto duradouro que teve no panorama musical angolano e além-fronteiras.
Considerado um dos principais expoentes da música moderna angolana, alcançou projecção internacional ao actuar em diversos países como o Brasil, onde teve a oportunidade de dividir palco com artistas de renome como Gilberto Gil, Ivete Sangalo e Daniela Mercury.
Entre os seus principais inspiradores musicais destacam-se nomes como Bonga, Filipe Mukenga, Waldemar Bastos, Stevie Wonder, Djavan e Martinho da Vila.
Já em 2005, numa nova fase da sua carreira, Don Kikas junta alguns dos melhores músicos do mercado para gravar o seu mais recente álbum, Viagem. Um álbum duplo, que viaja entre as sonoridades modernas e dançantes como a kizomba e o zouk, passando pelas tradições do semba, da kazukuta e do kilapanga. Mais uma vez, um encontro com dezenas de músicos e amigos de várias origens para fazer um disco com a alma em Angola.
Na sua carreira, tem pisado palcos por todo o mundo, tem feito parcerias musicais com vários artistas de renome nacional e internacional, compõe para si e para muitos outros. Sempre com o nome de Angola na voz e no peito.
Para celebrar os 30 anos de carreira, o músico iniciou uma digressão no mês de Maio, que começou em Angola e passará por Cabo Verde e Moçambique. A digressão tem término previsto para Outubro, com um grande concerto no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.
30 anos de música
Emílio Camilo da Costa, mais conhecido como Don Kikas, nasceu no Sumbe, capital da província angolana do Cuanza Sul, em 4 de Janeiro de 1974. Emigrou para o Brasil, onde permaneceu até aos 6 anos, regressando posteriormente a Angola.
Aos 8 anos, compôs a sua primeira canção, revelando uma nata vocação para a música, e profissionalizou-se em 1993. Ao longo da sua carreira musical, que já leva 30 anos, foi vencedor de vários prémios, em que se destacam os de Música do Ano em Angola, em 1997, com o tema Esperança Moribunda; Disco do Ano, em 2000, para o álbum Xeque- -Mate; Kizomba do Ano, em 2000, para o tema Na Lama do Amor; Voz do Ano em Angola, em 2000, entre muitos outros.