João Alves tem 67 anos mas pouco denuncia a sua idade. Senta-se à mesa e pergunta “este bacalhau é do chefe ou é do Ricardo?”. Perante os nossos olhares curiosos, a cozinheira responde que este “é do menino Ricardo”. Um encolher de ombros e um suspiro até à primeira garfada. “Ah, tenho que o elogiar. É muito bom, este, por acaso”. O presidente do grupo Riberalves come bacalhau três vezes por semana – pelo menos – há cerca de 30 anos, e escolhe pessoalmente qual é que come. Hoje, no entanto, calhou-lhe o seleccionado pelo filho mais velho. Poderia ser um problema se ele não gostasse de bacalhau, no geral. “Sempre gostei de bacalhau. Sempre. Vendia bacalhau com o meu pai e olhe…sempre gostei”, diz-nos com a simplicidade de quem ainda hoje não acha que construir um império que factura 150 milhões de euros e exporta para 20 países seja um grande feito. Ao lado está Manuela Alves, sua mulher há mais de três décadas.
São pais de Ricardo e Bernardo, a segunda geração a trabalhar na Riberalves, um nome que nasce precisamente da junção das primeiras sílabas dos seus nomes. O bacalhau que temos à frente foi processado na fábrica que acabámos de visitar, na Moita, e o vinho que nos foi servido é produzido na Adega Mãe, em Torres Vedras, outro projecto do grupo.
Foi o filho mais velho, Ricardo – Bernardo está no Congo porque é responsável pela parte internacional – que nos guiou pela maior fábrica de processamento de bacalhau do mundo: são 100 mil toneladas que todos os anos passam pelo complexo industrial da Moita, onde trabalham actualmente cerca de 300 pessoas, em turnos de 8 horas. Dessas, 30 trabalham no chamado segundo turno, das 17h à 1h, para garantir que está tudo pronto ao início de cada dia. Contas feitas, passa por aqui entre 8% a 10% de todo o bacalhau pescado no mundo. “Gerir uma fábrica de bacalhau é como gerir um qualquer outro negócio. A diferença é que o risco é muito maior, por só trabalharmos com um produto, e porque estamos dependentes da variação do preço”, diz Ricardo enquanto nos preparamos para a visita: toucas na cabeça, sapatos próprios e casacos bem quentes, que lá dentro não há estações do ano. É sempre Inverno. Assim que entramos, invade-nos as narinas um intenso cheiro a bacalhau, chegado da Rússia, da Noruega ou da Islândia.
Decisão memorável
A Riberalves prepara-se para fechar o ano com uma facturação de cerca de 150 milhões de euros e faz planos para continuar a aumentar a capacidade instalada, numa altura em que tem, por norma, em stock, cerca de 80 milhões de euros em matéria-prima. Os cinco primeiros meses do ano são os mais críticos para o departamento financeiro: é nesta altura que se fazem as compras e se armazena o produto. O resto do ano ditará a saúde do balanço. Mas há vezes em que a única coisa que salva as contas é mesmo o instinto.
Recuamos ao ano de 2008, quando o bacalhau começou a baixar de preço. No último trimestre, a cotação do peixe registou uma queda de 30%. Em 2009 continuou a baixar, e caiu mais 20%. “Em seis meses, o preço do bacalhau caiu para metade. Foi um ano difícil para nós, com resultados bastante difíceis e muito perto do zero”, revela Ricardo. “Até que no primeiro trimestre de 2009 o Sr. João Alves decidiu vender o bacalhau todo a perder dinheiro”, conta com um sorriso. Num curto espaço de tempo, a Riberalves vendeu os cerca de 20 milhões de euros que tinha em bacalhau a metade do preço de compra. “Tínhamos stock em casa, o preço tinha baixado e o meu pai vende tudo. Limpámos a casa, é mesmo esta a expressão”, recorda. “Eu não sei se teria coragem para tomar essa decisão”, admite. O resto do mercado não acompanhou o movimento. Falta de confiança terá bloqueado essa decisão da concorrência, mas a verdade é que a decisão de João Alves acabou por ser a mais acertada. E nem teve de passar muito tempo para que isso se revelasse: no trimestre seguinte, a Riberalves conseguiu recuperar todo o dinheiro. “Estávamos a vender a um preço mais baixo que os concorrentes, e com margens interessantes”. A decisão foi tomada muito mais por instinto do que por uma qualquer lógica de negócio. “Achei que fazia sentido”, dir-nos-á o próprio João Alves quando lhe perguntamos como sabia que ia resultar. “As pessoas esquecem-se de que as coisas podem mudar em três ou quatro anos”, portanto, as decisões às vezes são mesmo assim, diz-nos num encolher de ombros carregado de simplicidade.
O fundador da Riberalves admite à FORBES que foi o mesmo instinto que o fez querer entrar no negócio da seca do bacalhau, no final dos anos 1980. Antes disso ainda teve uma cadeia grossista que venderia “por uns 2 milhões de euros” ao grupo Jerónimo Martins. “Mas o que eu gostava realmente era de bacalhau”. Habituara-se ao produto quando o vendia com o pai, merceeiro, porta-a-porta. “Guardo do meu pai a honra e a cautela: ele dizia sempre para não dar um passo maior do que a perna.
Acho que ele não me ter deixado dinheiro foi mesmo o melhor”, revela entre duas garfadas.
Conhecimento e tradição
No início dos anos 1990 já a Riberalves era uma empresa legalmente constituída e alugava secas de bacalhau. A primeira fábrica do grupo, que ainda hoje funciona em Torres Vedras, foi então comprada por cerca de “4 milhões ou 5 milhões de euros, ao câmbio de hoje. Tinha o dinheiro do cash and carry e o resto pedi ao banco. Com juros de 30%!”, sublinha João Alves de dedo em riste para que tenhamos verdadeira noção de como “naquela altura não se tinha dinheiro assim com facilidade”.
A internacionalização do negócio sempre esteve bem presente no crescimento da empresa ao longo dos anos. E para o fazer com sucesso, Ricardo revela que a Riberalves adoptou sempre uma estratégia diferenciadora em cada um dos mercados, de acordo com as características de cada geografia. No Brasil, por exemplo, só tem responsabilidade até ao porto de destino, trabalhando depois com parceiros de distribuição em seis diferentes estados. Por isso, a equipa é apenas constituída por comerciais. A burocracia e a lei trabalhista brasileiras ditaram a decisão. Já em Angola, o grupo conta com armazém, distribuição e venda. Em breve, abrirá a primeira fábrica de processamento de bacalhau em Luanda, embora ainda não haja um prazo definido para que isso aconteça. Em Moçambique, por outro lado, a Riberalves trabalha com um distribuidor exclusivo para o país. Foi esta diversificação e cobertura geográficas que permitiu ao grupo “não sentir muito a retracção do mercado nacional” na época da crise. Ricardo acredita que o facto de a empresa exportar há 20 anos lhes dá uma vantagem em termos de maturidade face aos concorrentes, muitos dos quais só olharam para o exterior durante a crise financeira.
Regressemos à fábrica, onde já nos habituámos ao frio, para continuar a visita. Encontramos Natividade, que aos 64 anos é presença indispensável na Riberalves. “Aprendi e aprendo muito com ela”, diz Ricardo antes de lhe passar o braço pelos ombros. Natural de Viseu, Natividade conhece o bacalhau desde os 16 anos, idade com que começou a trabalhar em bacalhoeiros. Na altura havia mais de 100 em Portugal. Hoje são cerca de meia dúzia. Tem no rosto e no corpo as marcas de uma vida que nunca foi fácil. “E agora, para ela, é muito complicado lidar com algumas mudanças”, diz Ricardo quando a deixamos a confirmar se o peixe está bem aberto e a espinha deixada a um terço antes da salga, como manda a tradição. Foi de Natividade, aliás, uma das vozes que mais se ouviu quando decidiram mudar os tabuleiros da seca do bacalhau – passaram a poder ser manejados apenas por uma pessoa ao invés de precisarem de duas. “Aumentámos a eficiência da fábrica em 30% desde que implementámos o método Kaizen”, explica o administrador. E também não gostou quando mudaram a ordem de algumas linhas de produção. “Mas ela trabalha nisto há 50 anos. Mudar mentalidades não é fácil”, diz Ricardo enquanto acena para outra das senhoras que passa. Conhece praticamente todos os trabalhadores pelo nome e fala-lhes, sorridente. Aqui, na fábrica da Moita, trabalham já algumas famílias inteiras. Pessoas que se conheceram na Riberalves, casaram e tiveram filhos. Natividade é apenas uma das que conhece Ricardo “era ainda ele um menino que andava por aqui a correr”. Apesar de ser engenheiro alimentar de profissão, não foi óbvio que entraria directamente para a empresa. “Ele nem queria muito”, contará Manuela Alves à mesa.
“Foi um tempo para Inglaterra e quando voltou disse: quero ir para a fábrica”, recorda a matriarca. Vemos Lurdes, com cerca de 40 anos de vida dedicada ao bacalhau, a confirmar que o peixe está em condições. Aqui só se vêem mulheres, praticamente. Ricardo não sabe exactamente porquê, mas acredita que é uma questão de tradição: os homens estavam no mar, a pescar, e as mulheres sempre se dedicaram ao processamento do bacalhau. Nesta altura já percebemos como se selecciona, escala, salga, e seca o bacalhau – há umas câmaras gigantes que tratam disso – e passamos à parte da demolha. São poucos os povos que gostam do bacalhau seco, como os portugueses, não só porque não o sabem demolhar convenientemente: é que demora muito mais tempo a preparar para a confecção. Daí que o bacalhau demolhado e ultracongelado tenha vindo a ganhar espaço – e dinheiro – dentro do grupo. Representa actualmente 35% da facturação, mas a família não duvida de que este número vá crescer rapidamente.
Em honra da mãe
Toda a operação da Riberalves é gerida administrativamente em Torres Vedras, onde a empresa instalou a primeira fábrica e onde ainda hoje vive toda a família – com excepção de Ricardo. É aqui também que trabalha Bernardo, quando não está em viagem a tratar das vendas de bacalhau. Engenheiro civil de formação, começou a trabalhar no grupo através do ramo imobiliário da Riberalves, ficou à frente dos cafés Novo Dia – que a empresa comprou em 2008 e vendeu em 2016 (neste entremeio, o valor da facturação triplicou) – e agora dedica-se à Adega Mãe e à parte internacional do negócio. “A engenharia deu-me a flexibilidade de pensamento, e o bichinho comercial é de família”, justifica com uma gargalhada. Mas ao invés de partilhar o espaço com os pais, nos escritórios do grupo, Bernardo senta-se no espaço de outro projecto da empresa, que está a seu cargo: a Adega Mãe – ou a “Adega da mãe”, como algumas vezes lhe escapou enquanto falava com a FORBES.
A ideia surgiu no início da década porque, afinal, onde há bom bacalhau tem de haver bom vinho. Em 2005 o grupo comprou a quinta que visitámos, e em 2010 fez-se a primeira vindima. Bernardo usou os seus conhecimentos de engenharia civil para erguer um edifício que foi construído com a consultoria do enólogo Anselmo Mendes – uma relação que ainda se mantém – e o nome foi quase óbvio, conta-nos, com as vinhas a servir de pano de fundo.
“A nossa mãe sempre foi a pessoa que nos suportou, garantindo um equilíbrio muito grande à empresa”, afirma. “Uma adega cuida dos vinhos e uma mãe cuida dos seus filhos”, remata. A analogia pareceu-lhes óbvia e Manuela Alves – que dispensa aparecimentos públicos, como não se cansa de nos repetir – recebia assim a homenagem merecida por anos de dedicação à empresa e à família.
Ao lado de Diogo Lopes, responsável de enologia da Adega Mãe, Bernardo guia-nos até ao primeiro ponto de paragem obrigatório: um dóri – pequeno barco empregado na pesca do bacalhau – que foi pertença do famoso bacalhoeiro Creoula, e lhes foi cedido pela família Bensaúde. “A nossa primeira referência foi um Dory tinto”, recorda, explicando que foi esta a forma que encontraram de manter a ligação ao bacalhau, mesmo que aqui só se fale de vinho. Ao investimento inicial de 5 milhões de euros na Adega Mãe, acresceram este ano 600 mil euros para armazenamento e logística. Com 30 hectares de vinha – mais 80 hectares de um produtor parceiro, do outro lado da serra – onde crescem 12 variedades de uva, a Adega Mãe produz um milhão de garrafas de vinho por ano e factura perto de 3 milhões de euros. Mas João Alves parece ter mais planos para além desses. É que apesar de nos garantir que o azeite que serviu ao almoço é só para consumo pessoal e, no limite, dos convidados que regularmente recebem, algo nos diz que já pensa no passo seguinte. Afinal, fazer negócios com monoprodutos dependentes da natureza parece ser o chamamento desta família que nos recebe à mesa. “Ó mãe, o mano é o mais novo nos jogos de futebol, não é?”, ouvimos Ricardo perguntar enquanto enche um copo de Adega Mãe Viosinho. E por momentos, esta quase nos parece a mesa de um almoço de Natal em família.