Há um ano, dir-se-ia que Joe Lubin conseguia ler o futuro. Criptomoedas como a ether estavam numa ascensão meteórica e Lubin, co-fundador da Ethereum e um dos oradores mais eloquentes da área fazia parte de painéis de eventos como Davos e SXSW.
Nas conferências organizadas pela sua empresa, as chamadas “Ethereal Summits”, as multidões que acorriam ficavam suspensas pelas suas apresentações, por mais bizarras que estas fossem. Em Outubro de 2017, num evento realizado em São Francisco, nos EUA, Lubin repreendeu a plateia por maltratarem máquinas e serem rudes para a assistente digital da Apple, a Siri. “Desenhámos o Ethereum para que máquinas e bots possam ser cidadãos de primeira classe”, declarou Lubin antes de defender a sua visão de uma sociedade global democrática, descentralizada e auto-soberana. “Se forem simpáticos para as máquinas desta geração, talvez a futura inteligência artificial – que possa pensar que desrespeitaram os seus antecessores – transforme o vosso carbono em algo mais útil para a economia do futuro.”
O discurso de Lubin naquele Outono de 2017 não era ficção científica. Dito por outras palavras, a ideia de que a blockchain – um registo digital incorruptível que pode ser programado para registar transacções financeiras ou algo que tenha valor virtual, usado em todas as criptomoedas – se iria tornar numa nova ordem mundial não era assim tão descabida.
O preço de um token (unidade emitida nas ofertas iniciais de criptomoeda, semelhante à bitcoin) disparara para os cerca de 265 euros quando, no início de 2017, não valia mais de 8,7 euros, sendo que nos três meses seguintes atingiria um máximo de 1216 euros.
A FORBES não tardou a anunciar o nome de Lubin como o segundo homem mais rico no “universo das criptomoedas”, avaliando-o em cerca de 4,4 mil milhões de euros, com base na informação recolhida junto de várias fontes que o davam como proprietário de 5% a 10% de todos as ethers em circulação – cujo valor de mercado no início de 2018 ultrapassava os 90 mil milhões de euros. “O potencial desta tecnologia é enorme. As suas ordens de grandeza são muito mais valiosas que [os tokens] que hoje existem, porque vão ser transversais a todos os aspectos da sociedade. A verdade é que vamos construir tudo com base nesta tecnologia”, afirmou Lubin, de 54 anos, numa entrevista recente à FORBES.
Em finais de 2014, poucos meses depois do lançamento do ether através de crowdsale a 26 cêntimos de euro por token, Lubin criou a Consensys, uma holding que ele descreve pomposamente como um “organismo” global incumbido de criar as aplicações e infra-estruturas para um mundo descentralizado.
Na verdade, trata-se do primeiro conglomerado de criptomoedas, que abarca uma rede de empresas com fins lucrativos que apoia a maior rival de blockchain da bitcoin, a Ethereum. Mais de 50 negócios ganharam asas, desde um site de póquer a uma empresa de registos de saúde, passando por uma consultora de segurança.
Mas não houve qualquer ronda de financiamento nem oferta de dívida. Na versão do futuro descentralizado de Lubin, é ele o arquitecto, presidente-executivo e banqueiro central, ou seja, é ele quem financia todos os projectos da Consensys a partir da sua carteira pessoal de criptomoedas.
O plano inicial de Lubin tem de mudar drasticamente, apesar de já ter sofrido algumas machadadas nas fundações. Por um lado, a blockchain Ethereum enfrenta ventos fortes. Graças à sua superioridade técnica, ou pelo menos assim é percepcionado – em grande parte porque permite “incorporar” apps na blockchain – a Ethereum tornou-se numa plataforma de lançamento para centenas de ofertas iniciais de moeda virtual (ICO, na sigla inglesa), tendo muitas delas resultado em milhares de milhões de perdas para os seus defensores.
A paisagem do “planeta cripto” está pejada de destroços de ICO baseadas em Ethereum e agora a Securities and Exchange Commission (SEC), regulador do mercado de capitais norte-americano, e outros reguladores têm-nos na mira.
Em Novembro, a SEC interpôs acções contra duas start-ups, a Airfox e a Paragon, que venderam 23,6 milhões de euros em acções não registadas quando emitiram as suas ICO em 2017. Hoje, os tokens de ambas não têm praticamente qualquer valor.
Entretanto, uma app rival que apoia blockchains como a EOS, processa o equivalente a dez vezes o número de transacções diárias, e a Dfinity, que obteve recentemente 90 milhões de euros junto de investidores como a empresa de venture capital Andreessen Horowitz, estão a desafiar a Ethereum. Seja como for, quase todas as tecnologias blockchain continuam tremendamente lentas.
A Ethereum só consegue processar cerca de 20 transacções por segundo, enquanto a Visa, por exemplo, chega às 24 mil. Apesar de todas as vicissitudes, o “organismo” de Lubin continua a crescer.
A Consensys tem hoje 1200 funcionários e 200 vagas anunciadas no site, consensys.net.
Apesar de a empresa ter recusado fazer comentários, a FORBES estima que todas as áreas de negócio estão no vermelho e que poucas tenham alguma expectativa de rentabilidade. O organismo global de Lubin está a queimar dinheiro a uma velocidade estonteante, mais concretamente 90 milhões de euros por ano.
Quando alguns funcionários mais conscienciosos questionaram Lubin sobre a sustentabilidade da Consensys, este tinha sempre uma resposta na ponta da língua: “Joe diria, ‘Não se preocupem com isso. Podemos continuar a este ritmo por muitos e bons anos’”, recorda Carolyn Reckhow, ex-directora de operações globais que deixou a Consensys em Maio do ano passado. Com o preço da ether em queda livre – caiu de 1219 euros para cerca de 90 euros –, a fortuna de Lubin pode muito bem ser hoje inferior a 900 milhões de euros. Se assim for, como poderá continuar a financiar o seu sonho? Tudo depende da quantidade de ether que ele vendeu – e quando.
Ascensão de uma estrela
Lubin, tal como os outros co-fundadores do Ethereum, Vitalik Buterin e Anthony Di Lorio, cresceu no Canadá. O pai era dentista e a mãe agente imobiliária, e Lubin desde sempre que se considera um nerd.
Na década de 1980 frequentou a Universidade de Princeton, onde jogava squash e partilhava o quarto com o futuro magnata dos hedge funds Mike Novogratz, que acabaria, à imagem de Lubin, por apontar os azimutes para a blockchain e as criptomoedas. Licenciou-se em 1987 em engenharia electrotécnica e informática e deu os primeiros passos no laboratório de robótica de Princeton, mas acabou por enveredar pela área financeira.
O escritório de Lubin ficava nas imediações do Ground Zero [espaço antes ocupado pelas Torres Gémeas], em Nova Iorque, e aquilo a que assistiu no fatídico dia 11 de Setembro de 2001 fê-lo mergulhar numa profunda depressão.
Lubin vislumbrou ainda outras duas catástrofes: os banqueiros centrais iriam desvalorizar as moedas para financiar a dívida galopante, asfixiando o crescimento durante décadas; ou então, um evento “não-linear” inesperado criaria grandes dificuldades, lançando o mundo na pior recessão a que alguma vez assistíramos.
Lubin estava de tal forma perturbado com o rumo que o mundo tomara que se refugiou na América no Sul, passando uma temporada no Peru e no Equador. “Era uma perfeita loucura confiar naquelas estruturas… acreditar que salvaguardavam os nossos interesses. Senti que vivíamos numa economia e numa sociedade global que se encontrava figurativa, literal e moralmente falida. Estamos num lento, mas inexorável, colapso”, viria a declarar mais tarde, por ocasião da Ethereal Summit da Consensys em Maio de 2017.
Lubin começou a ver o mundo com novos olhos em 2011 e, quando leu o white paper da bitcoin, teve uma epifania: “A descentralização será o elemento-chave da mudança”. Devorou tudo o que encontrou sobre bitcoin e, a dado momento, apresentou Di Lorio a Vitalik Buterin, o criador da Ethereum, então com 19 anos, que viria a ser conhecido como o “jovem génio das criptomoedas”.
Depois de ler o white paper da Ethereum escrito por Buterin em Novembro de 2013, Lubin abraçou o projecto e marcou presença na reunião fundacional do grupo em Miami, nos EUA, em Janeiro de 2014.
Em Julho do mesmo ano, o núcleo duro sobreviveu ao anúncio do projecto e a sua ICO arrecadou cerca de 16 milhões de euros, sendo que correram rumores de que Lubin terá sido um dos maiores compradores. Mais tarde os fundadores acabaram por seguir caminhos distintos: Buterin focou-se na tecnologia, enquanto Lubin apostou na criação de um ecossistema em torno da Ethereum.
A escolha da localização da sede da Consensys não foi de todo inocente: Bushwick era então o bairro da moda em Brooklyn. O exterior do n.º 49 da Bogart Street não inspira – a porta está coberta de autocolantes, daqueles que habitualmente se vêem nas casas de banho dos bares, e as paredes cheias de grafitis – e o interior não é muito diferente. O edifício divide-se entre áreas residenciais e lofts e a Consensys ocupa um espaço híbrido, à imagem da estrutura organizacional criada por Lubin, que este designa de “holocracia” – ou seja, sem gestores, nem estruturas a quem reportar.
O processo de tomada de decisão pretende ser descentralizado e os funcionários podem escolher o seu cargo/funções, além de praticamente não haver postos de trabalho fixos, leia-se secretárias. “Todos os dias eram uma incógnita. Era tudo muito impreciso… nunca sabia se ia ter um lugar para me sentar, literalmente. Mais parecia ‘A Guerra dos Tronos’”, explica Jeff Scott Ward, que entrou para a Consensys em Junho de 2015 e deixou a empresa no início de 2018.
Havia uma casa de banho para 30 pessoas, acrescenta, dizendo que a empresa não contratou ninguém para gerir os recursos humanos durante, pelo menos, ano e meio.
Entre os primeiros projectos da Consensys contava-se um software de contabilidade para transacções em criptomoedas e plataformas de direitos digitais para músicos criadas a partir de tecnologia blockchain. A maior parte das ideias provinha de colaboradores da Consensys e, a partir do momento em que um projecto era aprovado, Lubin atribuía à start-up entre 220 mil e 440 mil euros para passarem da teoria à prática.
O objectivo era tornar cada projecto num negócio auto-sustentável. Para que isso acontecesse teriam, ocasionalmente, de assumir a respectiva entidade legal. A meta mais ampla de Lubin é transformar o ecossistema Etherum naquilo a que chama uma “rede”, cuja força provém da interconectividade dos vários projectos.
Apenas um pequeno número de projectos lançados pela Consensys descolaram de facto. O projecto de software de contabilidade, Balanc3, afirma ter mais de 25 clientes empresariais (mas não especifica quais) que pagam pelo menos 22 mil euros por ano pela licença de uso. A Kaleido, que ajuda as empresas a implementar tecnologia blockchain, conta com 1900 utilizadores e diz ter começado agora a cobrar pelos seus serviços.
A Amazon Web Services anunciou, entretanto, que a sua omnipresente plataforma de serviços em nuvem é compatível com as soluções blockchain da Kaleido. Mas não só. A Consensys também criou ferramentas técnicas para a Ethereum, que os programadores descarregaram milhões de vezes, mas não cobra nada por elas. Lubin tem sido menos rigoroso que os venture capitalists tradicionais no que respeita à aprovação de projectos.
“Joe é uma daquelas pessoas que gosta de manter todas as opções em aberto e que diz ‘porque não?’”, explica Carolyn Reckhow, actual responsável pelo departamento operações e serviços ao cliente na Casa, uma empresa de carteiras digitais. “Tem sorte por ocupar um cargo que lhe permite fazer isso, mas quando se trata de definir prioridades já as coisas mudam de figura. Tendencialmente diz sim a tudo”, acrescenta.
É óptimo ser “o” milionário da Ethereum quando a moeda digital é negociada a valores estratosféricos, mas quando tudo indica que vem aí mais um bear market até o próprio admite que talvez seja necessário fazer mais do que vender algumas criptomoedas ocasionalmente para financiar operações.
Muitos negócios, poucos lucros
Em 2017, Mark Beylin, estudante na Universidade de Waterloo, no Canadá, apresentou uma ideia a Lubin, a Bounties Network – uma rede para empregos em regime freelance semelhante ao popular site Upwork, com a diferença de que aquela usaria smart contracts Ethereum (códigos de programação que permitem executar contratos sem interferência humana), que também ajudam na facturação.
Ao fim de um ano, a Bounties Network emprega sete pessoas e tem um total de ofertas de emprego no valor de 220 mil euros, que vão desde um post de 800 palavras sobre o futuro do trabalho num blogue por 150 euros até à tradução de um white paper para português por 60 euros.
Até agora, as receitas da Bounties Network não foram além dos 44 mil euros. Em Outubro de 2016, Jared Pereira, um jovem finalista de liceu a viver no Dubai fez um pitch sobre o Fathom, uma aplicação que visa revolucionar o negócio do ensino superior através do crowdsourcing da avaliação e atribuição de notas. Lubin deu luz verde ao projecto, mas dois anos depois ainda não há um protótipo para lançar e a equipa tem apenas seis pessoas a trabalhar na ideia. Mais.
O site não passa de uma listagem de boas intenções: “Se os indivíduos fossem livres para moldar as suas experiências à medida dos seus objectivos e capazes de comunicar essas experiências com total fiabilidade a qualquer entidade no mundo, a eficácia da organização social iria mudar a todos os níveis.”
Outros projectos apadrinhados por Lubin parecem ainda mais sui generis. A Cellarius, por exemplo, que Lubin gosta de promover usando uma t-shirt com o respectivo logo, é um “franchise de transmedia ciberpunk” que visa dinamizar o storytelling colaborativo na blockchain.
Em que consiste exactamente este conceito e por que razão a blockchain vai torná-lo melhor ou mais rentável? A explicação dada no site está longe de ser elucidativa.
Lubin insiste que a Consensys está mais selectiva ao nível dos projectos, mas há hábitos enraizados que levam tempo a mudar. Em Outubro, por exemplo, a empresa comprou um negócio de mineração de asteróides com nove anos de vida chamado Planetary Resources. “É composto por um grupo de pessoas muito capazes, que querem explorar as possibilidades do universo blockchain no âmbito das operações espaciais”, diz Lubin numa linguagem algo criptográfica.
No caso da Civil, um projecto que ambiciona pôr o jornalismo na blockchain e aumentar o nível de confiança nas notícias, a ICO anunciada teve de ser cancelada porque não conseguiu obter o valor mínimo estipulado, cerca de 7 milhões de euros. Alguns dos 18 jornalistas da redacção da Civil afirmam que ainda não foram pagos em tokens, como inicialmente acordado.
A Consensys também presta serviços de consultoria que visam, acima de tudo, dotar as empresas de literacia em blockchain. Este é o melhor negócio da Consensys até à data e, no curto prazo, tem tudo para dar certo – até ao dia em que as empresas perceberem que a blockchain não é forçosamente melhor e que, em certos casos, é de facto pior que outras tecnologias.
Os consultores da Consensys também ajudaram a criar a Komgo, um consórcio de 15 bancos importantes, incluindo o Citi e o BNP Paribas, que quer usar a blockchain para tornar o financiamento de bens que necessitam de ser transportados – como o petróleo – mais eficiente.
No último ano, o braço consultor da Consensys cresceu de 30 para mais de 250 funcionários e, segundo Lubin, tem contribuído com “dezenas de milhões de dólares” para o conglomerado, quer em numerário, quer em participações accionistas. No que respeita aos projectos sob o chapéu da Consensys, na sua maioria apps e ferramentas de programação, a FORBES estima que, no conjunto, as receitas não terão ultrapassado os 9 milhões de euros em 2018.
Até agora, os maiores êxitos da Consensys fora do âmbito da consultoria são as ferramentas desenhadas para os programadores da Ethereum, como o Metamask, que permite aos utilizadores registar-se na plataforma a partir de um browser e que já conta com mais de um milhão de downloads (gratuitos).
A Truffle, que ajuda os programadores a gerir e a testar partes do código que escreveram para criar apps Ethereum, também já ultrapassou um milhão de downloads (igualmente gratuitos).
Cobrar dinheiro a sério por estas ferramentas poderá ser um desafio considerável, dada a natureza quase anarquista da comunidade de programadores de blockchain. A Consensys garante, contudo, que começará em breve a cobrar pela Infura, outra ferramenta que facilita o acesso à plataforma Ethereum.
“A Consensys fez mais pelo ecossistema Ethereum nos seus primeiros cinco anos de vida que qualquer outra empresa”, afiança Meltem Demirors, director de estratégia na Coinshares, uma empresa de gestão de cripto-activos.
Lubin não desmotiva por nada, pelo simples facto de não perseguir o lucro.
“A ideia não é criar empresas e pô-las a fazer dinheiro. A ideia é criar um ecossistema, muito ao estilo de uma família”, realça Lubin antes de reconhecer que é preciso que a equipa esteja mais focada: “Na Consensys 2.0, vamos dar mais atenção” aos problemas que o mercado coloca às start-ups. Os maiores problemas da Consensys terão menos a ver com a queda do preço das criptomoedas e mais com a bizarra estrutura operacional do conglomerado, na medida em que acredita (ou gostaria de acreditar) que está a reinventar o futuro do trabalho e das empresas no geral.
Quando entramos na sede da Consensys percebe-se rapidamente que há toques antiestablishment por todo o lado, incluindo um enorme cartaz na parede que diz: “Bem-vindo ao futuro descentralizado”. Aliás, Lubin tenta não dizer às pessoas o que fazer. “Ele quer ser o anti-director-executivo ou o anti-fundador”, explica Jeff Scott Ward, antigo colaborador, justificando a atitude com o facto de Lubin ser um tipo porreiro que quer ser democrático.
O problema é que ter um tipo porreiro a mandar numa empresa tem os seus contras. Na Consensys cumprir prazos e progredir rapidamente não é uma prioridade. “Digamos que ainda não há pressão para gerar receitas ou atingir objectivos, à imagem do que fazem as empresas e os venture capitalists em Silicon Valley,” realça Griffin Anderson, coordenador do projecto Balanc3.
Um comentador da Glassdoor descreve a Consensys como uma empresa com “financiamento ilimitado e pressão zero para apresentar resultados.”
Até à última moeda
A inexistência de uma estrutura organizacional tradicional acabou por gerar alguns comportamentos menos agradáveis. “Muitas vezes parece a série Survivor”, refere outro antigo colaborador, Lucas Cullen.
Os funcionários da Consensys que trabalham mais perto de Lubin têm acesso mais rápido aos recursos e a accountability varia muito de equipa para equipa, sublinha outro ex-colaborador. É verdade que a empresa tem Comités de Alocação de Recursos (CAR), que decidem quais os projectos que vão receber mais financiamento ou reforçar a equipa de engenheiros e programadores, o problema é que esses comités são muito fluidos. “Há sempre um financeiro e é normal integrarem pessoas ligadas às áreas que vão ser trabalhadas. Mas qualquer pessoa se pode inscrever num CAR e mudam frequentemente”, explica Thomas Hill, um dos co-fundadores da Truset, uma plataforma de dados empresariais baseada em crowdsourcing, que é também um dos muitos projectos exploratórios da empresa.
Ward trabalhou três anos na Consensys e defende que “há demasiados cozinheiros numa só cozinha. Quem tem o maior ego? Era muito desgastante”, recorda.
Por exemplo, a UPort, uma ferramenta que permite que os utilizadores façam log in nas aplicações Ethereum, começou com três gestores de projecto que nunca conseguiram ter uma visão comum.
Hoje em dia, apenas 15 aplicações usam a UPort e está a ser estudada a possibilidade de dividir o projecto em duas vertentes. Muitos ex-funcionários descrevem a cultura como caótica e, de facto, fica-se com a ideia de que a empresa não tem bem a noção do número de projectos que compõem o universo Consensys.
Na homepage do site lê-se que há “mais de 50 projectos em curso”, mas ao longo desta reportagem os números oscilaram entre “mais de 30” e, mais recentemente, 42. Um porta-voz da empresa sublinhou, contudo, que não é “um número rígido”.
Lubin reconhece algumas destas dificuldades. “A accountability tem sido um calcanhar de Aquiles, mas estamos a implementar mecanismos para tornar claro quem é responsável pelo quê”, afiança, contrapondo os aspectos positivos deste tipo de organização não convencional.
Os projectos são colaborativos e os grupos não conseguem blindar-se. Os colaboradores dizem que há espaço para questionar o que os outros pensam e há também quem aprecie a emancipação que a autonomia lhe traz – especialmente a oportunidade de participar e desenvolver vários projectos em simultâneo.
Na opinião de Hill, “mais tarde ou mais cedo, a Consensys vai ser um case study nas páginas da Harvard Business Review: seja porque se tornou num exemplo bem-sucedido de mudança de estrutura organizacional, seja porque foi um fiasco”.
A haver um paradoxo na busca de Lubin pela descentralização é o facto de a Consensys ser muito mais centralizada do que ele alguma vez admitirá. Quando os projectos ganharam escala e se autonomizaram, Lubin manteve uma participação de 50% ou mais em cada um deles. Lubin prepara-se – à imagem de John Pierpont Morgan e Andrew Carnegie na Idade de Ouro da América e dos magnatas da tecnologia Jeff Bezos e Mark Zuckerberg na era da internet – para ser um dos titãs a comandar a era blockchain. “É aqui que a história da descentralização vai por água abaixo. Nunca foi claro quem é o dono de quê”, diz Ward.
No caso da Grid, por exemplo, um dos projectos que a Consensys autonomizou através de uma ICO, a FORBES estima que Lubin tenha arrecadado pelo menos 20% do total dos token, a somar a metade do capital. “Acho que não fazem ideia do que é a descentralização”, realça Demirors, da CoinShares.
Entretanto, a distribuição de acções pelos 1200 colaboradores da Consensys tornou-se numa anedota, depois de Lubin garantir que o plano seria posto em prática “daí a seis semanas” sempre que alguém tocava no assunto. Os primeiros cem colaboradores receberam efectivamente a sua fatia de acções no início de 2017, mas dois anos depois, e segundo a própria empresa, ainda estão a elaborar um plano que permita pôr essa intenção em prática. Para Lubin, a estrutura da Consensys não apresenta contradições. “Quando conseguimos criar um sistema que acomoda muita gente e que todos adoram, isso não significa que a estrutura original tenha de estar nas mãos de muitas pessoas” – um argumento que poderia muito bem ter sido usado por Mark Zuckerberg na véspera da oferta pública de vendas das acções do Facebook.
Em 2017, a Consensys descobriu nas ICO uma maneira fácil e lucrativa de transformar projectos em start-ups e de recompensar os seus colaboradores. Mas agora que o regulador americano (SEC) está a apertar a malha à volta das ICO, a margem de manobra é muito menor. “Estamos à procura de mais investimento externo, o que implica, em negócios mais específicos, um modelo de VC mais tradicional”, esclarece Ron Garrett, director da Consensys Labs, a divisão responsável por seleccionar os projectos que passam à fase seguinte, i.e., que passam a ser start-ups.
Garrett acrescenta que, nestes casos, ficam “com menos acções”, ao contrário de outras incubadoras de start-ups, como a Betaworks, que ficam com a maioria do capital. Adeus democratização e descentralização.
Por ora, o maior desafio do mentor da Consensys é correr contra o tempo: virão as apps de blockchain a ser um sucesso generalizado antes da fortuna de Lubin ser totalmente delapidada? Importa não esquecer que mesmo as apps mais populares em Ethereum têm um universo de utilizadores muito diminuto.
A app mais usada é uma bolsa descentralizada para negociar criptomoedas chamada IDEX, que nem sequer está incubada ou ligada à Consensys. Operacional há um ano, não tem mais de mil utilizadores diários. “Sabíamos desde o início que ia dar muito trabalho e levar muito tempo até podermos falar numa evolução massiva à escala planetária”, realça Lubin que, mantendo a sua condição de milionário, conseguirá manter a empresa durante alguns anos – mesmo com perdas anuais próximas das centenas de milhões de euros. “A Consensys, ao dia de hoje, é uma empresa estável e vigorosa”, insiste.
Mas até onde está Lubin disposto a ir? “Não tenho planos para sair e nunca desenhei uma ‘saída de emergência’ para nenhum projecto em que me envolvi até hoje”, garante o homem por trás da empresa que acabou de promover um “demo day” para 16 start-ups que anseiam pelo seu financiamento. “Comigo é tudo ou nada”.