O circuito da temporada “Resort” 2018 passou por diversos pontos do globo: Milão, Paris, Nova Iorque, Florença, Quioto e Los Angeles. Maria Grazia Chiuri, directora criativa da Christian Dior, foi a responsável por levar os admiradores da marca até ao Upper Las Virgenes Canyon Open Space Preserve, em Calabasas, na Califórnia, para assistirem a um desfile inspirado pelas pinturas rupestres de Lascaux.
Sobre uma passarela de terra e no meio de tendas, balões de ar quente e uma front row improvisada com caixas de madeira, está a portuguesa Maria Clara.
Nas palavras de Vasco Freitas, cabeleireiro na indústria da moda, a manequim tem um portefólio que muitas modelos internacionais desejavam – “se calhar, só 200 manequins em todo o mundo têm o mesmo portefólio que ela”, adivinha.
Aos 20 anos, Maria Clara participou nas maiores semanas da moda do mundo – na recente temporada Outono/Inverno fez 15 desfiles entre as quatro principais cidades e desfilou para a Alta Costura da Dior e Dolce & Gabbana – e modelou para marcas como Oscar de la Renta, Gucci, Chloé ou Lacoste. No entanto, mantém os pés bem assentes na terra, garantindo que dá igual importância a todos os trabalhos que fez até hoje. “Sejam grandes ou pequenos, marcas mais conhecidas ou menos”, assegura a manequim à FORBES.
Tem momentos em que está tão focada que nem consegue perceber a dimensão do trabalho que está a fazer. Mas a verdade é que quando lhe pedimos para nos falar de um que tenha sido mais especial, é rápida a destacar o desfile que a levou pela primeira vez a Los Angeles e lhe deu a oportunidade de realizar o sonho de visitar o Passeio da Fama: Christian Dior Resort 2018.
É certo que o sucesso dos manequins portugueses a nível internacional não é coisa nova. Ainda assim é uma realidade que tem vindo a crescer ao longo dos últimos anos, e quem o confirma são os próprios.
Maria Clara arriscou o mercado internacional em 2014. Em conjunto com a agência que a representa desde o início, em Portugal – a L’Agence – enviou as fotografias dos trabalhos que tinha feito no país para várias agências internacionais e foi a NEXT quem lhe ofereceu um contrato a nível mundial. “Fiquei posicionada com eles em Londres, Milão, Paris, Nova Iorque e Los Angeles”, conta.
A estratégia da L’Agence mostrou-se acertada e foi essa mudança que, segundo Thomas Haugen, contribuiu para o aumento do número de manequins portugueses a singrar no panorama internacional. O director da The Fashion Management, a agência norueguesa que representa Maria Clara, acredita mesmo que terá sido uma alteração de rumo decisiva para os modelos nacionais.
Antes as agências concentravam-se apenas em assinar com manequins que correspondessem às necessidades do mercado nacional, sendo que esses mesmos rostos podiam não ser adequados para o que internacionalmente se estava à procura. Mas assim que começaram a entender o mercado lá fora, tornaram-se mais receptivas à diversidade.
Um novo mundo
“Os tempos mudam”, e com isso Maria Clara quer dizer que hoje, através das redes sociais, é mais fácil os jovens terem coragem para arriscar.
O facto de se mostrar mais aquilo que antes era uma incógnita, como os bastidores, pode levar as pessoas a pensar “eu também consigo e quero tentar”.
Perdem o medo porque já sabem à partida como as coisas se processam, e já não é um mundo totalmente desconhecido. Além disso, as redes sociais são já o local onde muitas modelos são descobertas, uma vez que permitem que as próprias promovam a sua imagem e personalidade.
Há mercados particularmente atentos ao fenómeno, como é o caso de Los Angeles. Mas apesar de ser importante ser activo nas redes sociais e manter um bom relacionamento com os seguidores, Maria Clara considera que só isso não é suficiente. “Não é isso que vai fazer com que a modelo mostre o que vale num set fotográfico, saiba estar perante uma câmara, se saiba movimentar, mostre a roupa da forma certa ou ande numa passarela numa linha direita”.
Fernando Cabral é modelo desde 2010 e concorda com a assunção de que hoje há mais modelos portugueses a apostar numa carreira internacional. Mas não deixa de salientar que, no que toca ao lado masculino, Portugal sempre esteve muito representado.
Para o manequim, a razão para esta mudança é apenas uma: oportunidade. Elsa Gervásio, directora da L’Agence, partilha da visão e considera significativo o momento que as manequins portuguesas atravessam: “Há quatro anos a esta parte, assistimos a um momento quase histórico em Portugal, porque além dos homens também temos um mercado para todas as modelos femininas que querem trabalhar no mercado internacional”.
Aos 21 anos, com menos tempo de carreira, mas uma temporada em Milão no currículo, a modelo e actriz Isabela Valadeiro não só faz referência ao número de manequins que vão para fora, como também aos que chegam lá fora e constroem uma carreira de sucesso. O factor de mudança é “a sede de querer conhecer”, uma vez que para se conseguir ser modelo é essencial haver “disponibilidade para viajar, para conhecer, para chegar lá fora e ser reconhecido”, conclui.
Isabela venceu o concurso “Face Model of the Year” – da agência Face Models – em Setembro de 2016, e no mês seguinte já estava a desfilar para a portuguesa Fátima Lopes na Semana da Moda de Paris. Os primeiros três meses do ano passado passou-os em Milão: “fiz um casting para uma agência lá e fiquei”, conta.
Parece simples, mas a partir do momento em que se chega lá fora a palavra simples dá lugar a intenso, competitivo ou cansativo. Isabela recorda que, no primeiro dia, quando o director da agência lhe disse que tinha de correr para os castings pensou: “é bem verdade, mas não conheço nada em Milão”.
De repente já tinha dez castings marcados em zonas completamente opostas da cidade – chegou a enfrentar filas com mais de 500 raparigas à sua frente e não foi fácil, assim como não foi fácil ouvir vários “não”. Por tudo isto é que, nesta área, a determinação é essencial.
Quem o diz é Isabel Branco, directora de casting do Portugal Fashion. “A manutenção do registo de modelos internacionais é muito difícil”, afirma, explicando que colocar um pé em solo internacional não é garante de que lá se fique.
Portugal está na moda
As estreitas ligações de Portugal a África podem explicar parte do sucesso dos manequins nacionais. Os traços fisionómicos que muitos modelos carregam, em função das suas ligações familiares a Angola e Moçambique, ex-colónias portuguesas, confere-lhes uma imagem distinta que, cada vez mais, tem cativado as grandes marcas.
A manequim Sónia Balacó refere que “somos uma mistura muito grande. Latinos, mas com influência africana também”, o que faz com que haja imagens, rostos e corpos diversos e belíssimos.
Para Isabela, essa é uma das características que leva o cliente a optar por um manequim português. As diferenças que têm das modelos provenientes dos países nórdicos, por exemplo, fazem com que se destaquem.
Uma distinção importante, pois, embora uns acreditem que existe um padrão de medidas definido, e outros achem que isso já não se aplica, o fotógrafo Tomás Monteiro considera que “há um padrão. Mas dentro desse padrão, as pessoas têm de ser diferentes” porque é isso que faz com que o manequim tenha sucesso.
Além das características físicas, há traços da personalidade dos portugueses que saltam à vista: “Há quem diga que os portugueses são sempre os mais simpáticos e amigáveis com quem trabalham”, conta Maria Clara.
O povo luso é, por norma, muito trabalhador e isso também se confirma na indústria da moda: “nota-se que se for preciso trabalhar muito, o português trabalha muito”, assegura a modelo Francisca Pérez.
Para muitos, a ideia de tentar uma carreira no estrangeiro pode parecer aliciante, mas longínqua por motivos financeiros. Thomas Haugen acredita que “nenhum modelo deve investir dinheiro na sua carreira”, realçando que no caso de uma agência o pedir, o manequim deve deixá-la de imediato.
Mas Maria Clara conta que, apesar de as agências apoiarem o manequim, posteriormente é tudo descontado na conta do próprio. Ou seja, a agência avança com o dinheiro para estadas, transportes, viagens, mas à medida que o manequim vai sendo remunerado pelos trabalhos, o valor vai-lhe sendo cobrado.
Trabalhar em Portugal e fora de portas são duas realidades completamente diferentes. Quando a FORBES tentou perceber as maiores diferenças entre uma semana da moda nacional e uma internacional, Maria Clara rematou:
“não tem nada a ver. Essa é logo a primeira coisa”: ao desfilar lá fora, o modelo está-se a expor ao mundo inteiro, enquanto que cá nem toda a gente vê. Em Portugal, cada modelo faz um casting para o evento todo e no estrangeiro tem de fazer um para cada marca ou designer, em separado.
Outra questão que dificulta a vida e obriga a uma rápida locomoção é o facto de os desfiles, a nível internacional, serem praticamente todos em locais diferentes. Já em Portugal realizam-se todos no mesmo lugar.
Quando se fala em cachets as diferenças ainda se acentuam mais. Luís Pereira, director de casting da Moda Lisboa, conta à FORBES que os manequins recebem entre 200 e 500 euros por dia na semana da moda da capital, e que a nível internacional arrecadam, no mínimo, entre 1500 e 2 mil euros por desfile, podendo fazer vários por dia.
No caso do Portugal Fashion, Isabel Branco, coordenadora de moda do evento desde 1999, diz que os cachets variam entre os 150 e os 750 euros por dia. O fotógrafo Mário Príncipe estima que, em Portugal, as receitas de uma campanha possam ir até aos 25 mil euros, sendo que a nível internacional o valor está, por norma, acima dos 50 mil euros, revela Fernando Cabral.
No caso dos editoriais, a manequim Diana Pereira calcula que em solo nacional se receba cerca de 200 euros, enquanto lá fora esse valor pode chegar aos 3 mil euros. Os números são diferentes de acordo com o modelo, naturalmente, e, no caso da Sara Sampaio, com a projecção que tem a nível mundial e o currículo brilhante, Luís calcula que os cachets estejam na ordem dos 50 mil a 100 mil euros.
Pelos mesmos motivos, Mário supõe que a manequim Maria Clara consiga facturar em Portugal cerca de 1500 a 3 mil euros por dia. No entanto, parte do valor recebido vai directamente para a agência que os representa, sendo que a percentagem varia significativamente consoante o país onde estão a trabalhar. Maria Clara revela à FORBES que em Nova Iorque essa percentagem é de 20%, “mas depois o Estado ainda tira outros 30% por não ser cidadã americana”, esclarece.
Em Londres e Milão são cerca de 40% e em Paris o valor pode chegar aos 70%. Em Portugal o valor está na ordem dos 20%.
Moda dos sonhos
Seja qual for a profissão ou a área, todas as pessoas têm sonhos e ambições. Algo que possa elevar as suas carreiras a um outro nível.
Fernando teve a sorte de fazer na sua primeira experiência internacional um dos seus trabalhos de sonho. Foi uma campanha para a marca H&M ao lado daquele que considera o seu ídolo: o irmão e manequim Armando Cabral.
Também Sónia aponta um dos marcos da sua carreira logo ao início, quando foi fotografada pelo reconhecido fotógrafo Mario Testino.
Maria Clara passa grande parte do seu tempo em Nova Iorque – a FORBES falou com ela via Skype e mais tarde, presencialmente, em Lisboa. O dia-a-dia numa das capitais da moda a nível mundial é muito incerto, até porque “é uma indústria que vive muito à última da hora, em que tudo é decidido de um momento para o outro”, conta a modelo. Quando tem trabalhos viaja uma ou duas vezes por semana, mas em dias que estão à partida reservados para castings, o normal é tomar o pequeno-almoço, verificar os mails – para ter a certeza de que não falha um trabalho ou um casting – arranjar-se, sair porta fora e ir conhecer clientes.
Debaixo do braço leva sempre o portefólio, um cartão com informações como o nome e agência que a representa, saltos altos e boa disposição.
Maria Clara fala da moda com um brilho nos olhos, trata-a por arte, e é um verdadeiro exemplo de que com muito trabalho se consegue chegar muito longe. O fotógrafo Tomás Monteiro conta que a modelo “saía de um desfile e ia ver o vídeo para avaliar o andar, para ver o que podia melhorar, perceber se estava coordenada com a música…”
Mas nem sempre a vida dos manequins portugueses foi tão fácil. Há cerca de 20 anos, Diana Pereira chegava a um casting e dizia que era espanhola porque isso fazia a diferença na hora de a aceitarem ou não.
Nas vezes em que optou por revelar a sua verdadeira nacionalidade, perguntaram-lhe se Portugal era uma província espanhola ou se pertencia ao Brasil. Em casos mais extremos confundiam-na com a empregada de limpeza. “Era puro racismo em relação à nossa nacionalidade. Era assustador o que se sentia”, confessa a manequim à FORBES.
A única portuguesa a ganhar o Supermodel of the World considera impressionante a mudança que houve em relação a Portugal.
A alteração em relação aos tempos em que iniciou a carreira foi tal, que os manequins de hoje vêem a nacionalidade portuguesa como uma vantagem – Maria Clara recebe sempre muitas perguntas sobre o país e considera que, também porque não há tantas portuguesas como de outras nacionalidades, isso leva as pessoas a não se esquecerem dela: “Aquela é a miúda de Portugal”.
Um ano depois de Diana Pereira vencer o concurso de beleza da Ford Models, em 1997, Sónia Balacó foi uma das finalistas do mesmo desafio. Recorda-se dos dias intensos de castings e de como a experiência era diferente do que é agora: “na altura nós andávamos com portefólios pesadíssimos, agora eles andam com iPads”, afirma divertida.
Durante a conversa com a FORBES, a actriz realça ainda o quão engraçado é comparar os cachets da altura aos de agora. Sem falar em números concretos, lembra que naquela época, os editoriais eram muito bem pagos e que hoje em dia, segundo o que ouve, os preços estão absolutamente esmagados.
Outra grande diferença, segundo Xana Guerra, estilista e co-fundadora da escola Pulp Fashion, prende-se com o facto de antigamente não haver muitas pessoas com coragem para seguir esta carreira. Não era qualquer um que optava pelo instável e “deixava de seguir engenharia ou medicina”, afirma à FORBES, até porque, na altura, a profissão não era levada a sério pela sociedade e muitas manequins desistiam da área por não terem permissão dos pais.
Mas se houve algo que não mudou ao longo destes anos, é o orgulho com que cada manequim representa as cores de Portugal no estrangeiro. Quando são chamados para um trabalho, “é Portugal que é chamado”, afirma Fernando Cabral. E isso só aumenta a responsabilidade. E o privilégio.